As prostitutas de Chico Buarque e Guy de Maupassant

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Ed Wilson Araujo

Em uma recente viagem de trabalho, no avião de volta para São Luís, devorei o conto “Bola de Sebo”, do escritor francês Guy de Maupassant, na bela capa (Marcos Cartum) e encadernação da editora Expressão Popular.

Confesso que, ao comprar o livro, fiquei atraído pela curiosidade do título, rapidamente desfeita na construção da personagem principal. Bola de Sebo é o apelido de uma prostituta corpulenta, no estilo do pintor colombiano Fernando Botero, gordinha, de ancas volumosas e mãos pequenas.

Escrito em 1880, o texto ironiza a decadência da elite francesa no fim do século XIX, tomando como pano de fundo a ocupação da França pelo exército prussiano. Os franceses, dominados, deslocavam-se em busca de lugares seguros. O conto narra uma dessas fugas, de Ruão para Havre, a bordo de uma carruagem onde estavam membros da nobreza, da burguesia e do clero: ricos comerciantes, parasitas do poder público e freiras. Entre os passageiros figurava também a mais famosa prostituta da cidade – Bola de Sebo. Mesmo a contragosto da maioria, a meretriz seguiu viagem.

O percurso, longo e castigado por uma forte nevasca, tornou a viagem um tormento. A certa altura da estrada, longe de qualquer lugar onde pudessem se hospedar, os passageiros acometidos pela fome foram “salvos” pela única pessoa a bordo que carregava uma cesta farta de alimentos.

Generosa, Bola de Sebo compartilhou seus quitutes com as companhias de viagem. Todos refastelaram-se no banquete da puta, mas não deixaram de torcer o nariz para o fato de que havia uma indesejada a bordo.

Após um longo caminho de viagem, castigada pela nevasca mais intensa, a carruagem parou em um vilarejo, no distrito de Tótes, onde havia uma hospedaria. Fatigados, pousaram para dormir e pegar a estrada no dia seguinte.

Neste local acontece o ápice do conto. Um oficial prussiano, sediado em Tótes, na mesma hospedaria, proíbe a carruagem se seguir a viagem. A proibição só seria revogada sob uma condição: Bola de Sebo deveria saciar os desejos sexuais do oficial.

Passam-se alguns dias, sem Bola de Sebo atender à exigência do militar, aumentando o tormento do grupo da carruagem, que teve de implorar à meretriz para que ela prestasse seus serviços sexuais ao oficial. Mas, ela não cedia. Nos bastidores da hospedaria, as freiras, as mulheres e os homens ricos que viajavam na carruagem, comentavam (p. 72-73):

“Ora, pois, não vamos morrer de velhice aqui! Já que é seu ofício, o dessa rameira, de fazer isso com todos os homens, acho que ela não tem o direito de recusar um e não outro. Vejam vocês, essa ai pegou todos os homens que encontrou em Ruão, até os cocheiros. Sim senhora, o cocheiro da prefeitura! […] E hoje, que se trata de nos tirar do apuro, ela se faz de rogada, essa lambisgoia!… Acho até que esse oficial se porta muito bem. Talvez ele esteja privado desde muito tempo, e nós seriamos as três que ele, sem dúvida, teria preferido. Mas, não, ele contentou-se com aquela, que é de todo mundo. Respeita as mulheres casadas. Pensem bem, ele é o senhor. Bastaria dizer “eu quero” e poderia tomar-nos à força com seus soldados.

As duas mulheres tiveram um pequeno estremecimento. Os olhos da graciosa sra. Carré-Lamadon brilhavam, e ela estava um pouco pálida, como se já se sentisse tomada à força pelo policial.

Os homens, que discutiam afastados, aproximaram-se. Loiseau, foribundo, queria entregar “aquela miserável” ao inimigo, com pés e mãos atados. Mas o conde, descendente de três gerações de embaixadores e dotado de um físico de diplomata, era partidário da habilidade:

– É preciso convencê-la – disse ele.

As tentativas de convencer Bola de Sebo a saciar os impulsos sexuais do oficial revelaram toda a podridão moral e ética daquelas figuras patéticas. A meretriz, no entanto, recusava dormir com o inimigo. Ela se entregava para qualquer francês, mas não admitia deitar-se com o alemão que invadia seu país.

A tensão do conto aumenta, explorando os lances sórdidos da elite hipócrita que tenta de todas as maneiras convencer Bola de Sebo, até que e prostituta cede e deita com o militar prussiano.

Enquanto ele saciava os desejos do oficial, as madames e seus maridos abasteciam a carruagem de alimentos para seguir viagem no dia seguinte.

Ao retomar a estrada, e chegada a hora do almoço, todos comeram alegremente, mas nenhum dos viajantes ofereceu sequer um pedaço de pão à meretriz que os salvou dos inimigos prussianos.

Para Bola de Sebo, só restava chorar.

A bola de sebo de Chico Buarque

Chico Buarque inspirou-se no texto de Guy de Maupassant para criar a música “Geni e o Zepelin”, tema da Ópera do Malandro, peça de muito sucesso no final da década de 1990. A Geni de Chico Buarque é um travesti, de nome Genivaldo (na peça), que prestava serviços sexuais para todo tipo de homem, até que um dia um comandante poderoso, a bordo de um zepelim, ameaça destruir a cidade. Seu intento só seria desfeito se Geni deitasse com ele.

Na música, Chico Buarque transforma a travesti Geni em uma formosa dama, a ponto de “aprisionar” o guerreiro vistoso, temido e poderoso, que ameaçava destruir tudo com seu objeto voador.

Os moradores da cidade, acostumados a xingar Geni, imploram para que ela atenda ao desejo do comandante, passando a elogiá-la.

“Vai com ele, vai Geni

Você pode nos salvar

Você vai nos redimir

Você dá pra qualquer um

Bendita Geni”

[…]

A cidade em romaria

Foi beijar a sua mão

O prefeito de joelhos

O bispo de olhos vermelhos

E o banqueiro com um milhão”

Geni resolve atender aos pedidos dos moradores e sacia aquele que ameaçava destruir a cidade. Aos olhos da população, a prostituta vira uma heroína donzela que salva a cidade. Saciado após “lambuzar-se a noite inteira”, o comandante do zepelim desiste do seu intento e vai embora. Ato contínuo, todos aqueles que imploraram a Geni passam a insultá-la novamente. E assim ela volta ao submundo da prostituição, tal qual Bola de Sebo.

Nestes tempos de exacerbação do fundamentalismo religioso, intolerância e avivamento da hipocrisia, vale a pena ler e tomar como reflexão o conto “Bola de Sebo”. Ideal é ler o livro escutando a música Geni e o Zepelim. As duas obras dialogam, formando um hipertexto fantástico, tiro certeiro no conservadorismo de todos os tempos.

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