Guardo Caetano Veloso numa fita cassete

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Autora: Andréa Oliveira (Jornalista e escritora)

A memória é um recurso de viagem precioso, sobretudo nesse tempo de imobilidade que atravessamos. Estamos em agosto de 2020 e minha lembrança tem a voz de Caetano Veloso. Ele faz 78 neste dia 7 e eu viajo para um encontro quase perdido, quando o entrevistei, também num agosto, 22 anos atrás. Impossível esquecer porque não foi uma entrevista qualquer para a menina de vinte e poucos anos que atuava como editora do caderno Alternativo do jornal O Estado do Maranhão. Essa memória voltou ano passado, quando vi, no período da campanha eleitoral de outubro, o vídeo em que Manuela D’Ávila, convidada para ser entrevistada por Caetano em sua coluna na Mídia Ninja, lembrou que fez jornalismo para realizar o sonho de entrevistar seus ídolos e ali era o ídolo que a entrevistaria.

A prova do que poderia ser uma memória inventada estava numa pequena fita cassete. Procurei nos locais mais prováveis e lá estavam os registros da entrevista com João do Vale em Pedreiras e todas as fitas da pesquisa em torno dele, devidamente etiquetadas. Também os cassetes da pesquisa para o livro Nome aos Bois, mas nada do Caetano. Passei alguns dias bem triste, mas com o tempo aceitei essa perda porque estava envolvida numa outra história.

Pela primeira vez na vida eu teria um canto para chamar só meu em casa. Desde criança o quarto sempre foi dividido com as irmãs. Quando saí de casa segui dividindo, primeiro com a Fernanda, em 2000 – quando fui estudar em São Paulo, e depois com Celso, companheiro com quem divido o quarto, a casa e a vida até hoje.

A necessidade de ter esse lugar onde reunir meus tesouros, entre livros, amuletos, objetos de fé, arte e memória afetiva, começou a tomar forma com a escolha de um pequeno quarto da casa, antes reservado às caixas e tudo o que não era de lugar nenhum. Reformado, ganhou piso e paredes novas, estante, mesa, sofá, luminária, cores. Minha casinha. Meu universo particular. Meu canto, meu lugar no mundo. É para lá que vou todo dia e é lá que minha alma mora.

 

Reencontro

Tudo finalmente fez sentido. Meus livros vivos na minha frente. Cada caixa aberta, uma redescoberta. Bonecas, as muitas meninas que vivem em mim. Desenhos dos filhos, bilhetes, fotos. Crochês, costuras e bordados da mamãe em toda parte. Fotografias, cartões, murais de fotos e quadros que me lembram quem eu sou. E no meio disso tudo, a fita cassete em que escrevi: Caetano. Dentro da caixinha, ao lado do gravador que não uso há séculos, e que só funciona se eu mantiver o dedo apertando o play.

Conferi a minha voz, que é minha, mas já não é. Era eu ali, a jornalista deslumbrada por ouvir o ídolo e ao mesmo tempo aplicada em não fazer um trabalho banal. E ele, o Caetano Veloso em mais uma das inúmeras entrevistas sobre o mesmo assunto de uma longa turnê. Nem desconfiava do quanto aquele momento era importante pra mim.

Era agosto de 1998. O produtor cultural Guilherme Frota chega à redação com o material de divulgação do show Livro Vivo, de Caetano Veloso, que traria a São Luís em 1º de setembro, e informa que o músico concederia entrevista a um único veículo de comunicação da cidade. Seria por telefone, dali a alguns dias, e aquela era a melhor notícia do ano. Não bastasse o show eu teria a chance de conversar com ele.

Em pouco tempo, no entanto, o entusiasmo se transformaria em terror. Era um tempo em que nem internet existia entre nós, mesmo na redação do maior jornal da cidade, e para gravar uma entrevista por telefone era preciso usar o aparelho da sala do diretor de redação, a única com dispositivo de viva voz. Fui ao chefe, Ribamar Corrêa, pedir licença para usar sua sala para uma entrevista importante. Ele disse sim e só pediu que eu o lembrasse com alguma antecedência.

Ao final da conversa, quando eu estava de saída com a missão cumprida, ele perguntou quem eu entrevistaria. Respondi meio blasè e ele então colocou uma condição para ceder a sala. Disse que só liberaria se pudesse ficar e acompanhar a conversa. Sem alternativa, aceitei a condição e saí de lá trêmula. Entrevistar um ídolo diante do chefe não fazia parte do meu sonho de estudante.

Chegado o dia, tudo confirmado, discretamente fui à sala do chefe minutos antes do horário combinado para testar o gravador, posicionar e deixar tudo pronto. Ele ali estava e ali ficou. Como rastilho de pólvora, a notícia de que eu entrevistaria Caetano Veloso pelo viva voz correu solta e antes que o telefone tocasse, metade da redação se acotovelou na sala.

O que seria uma conversa a dois virou um talk show. A plateia, embora silenciosa, me deixou em pânico. Enfrentei e segui. Ouvindo agora, só eu percebo o que sentia. Nem gaguejei e acho que consegui manter um nível de conversa sem que o entrevistado perdesse a paciência. Aproveitei para perguntar muito além do show: falamos de filosofia, de João do Vale, Alcione e de Zeca Baleiro, que havia lançado o primeiro álbum e chamara a atenção do baiano. No final ainda ganhei uma descrição linda de suas memórias da ida anterior a São Luís, em companhia do filho Moreno.

A entrevista foi publicada em 9 de agosto de 1998, um domingo, com chamada de capa e ocupando duas páginas do caderno de cultura, o Alternativo. O jornal não possui acervo das edições dessa época e as fotos aqui exibidas são do arquivo da Biblioteca Pública Benedito Leite. Em 1º de setembro eu estava lá, na primeira fila, no show que lotou o Ginásio Castelinho, em São Luís, ao lado da minha irmã Eulália. E nesta sexta estarei diante da TV para a live mais esperada desse pós-fim do mundo, celebrando a vida e a obra de Caetano Emanuel Viana Teles Veloso.

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