A cidade e o mar (nos 79 anos de Chico Maranhão)

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Baía de São Marcos. Foto: Mario Araújo

 

Autor do Texto: Celso Borges (poeta e jornalista)

Em 1972 Chico já está em São Luís. Os primeiros meses são de dor e solidão. De que forma aquele homem e artista percebe essa cidade diferente, que cresce independentemente do seu canto? Nem o mar é o mesmo. Que mar, então, é o mar de Chico Maranhão? Posso compará-lo, por exemplo, ao mar de Dorival Caymmi? Não. Porque a Bahia não é o Maranhão, nem São Luís é Salvador. E os pretos escravizados que ficaram na Bahia são, em sua maioria, de tribos diferentes das que vieram para o Maranhão.

Poeticamente posso aproximá-los, mas a distância é evidente. Ponta d’Areia não é Itapuã, nem São Marcos é a Baía de Todos os Santos. Há os pescadores em comum, mas os fieis de São José não são os fieis de Nosso Senhor do Bonfim. No meio do caminho tem um 2 de fevereiro, lá, e um São José de Ribamar em setembro, aqui, cobrindo a cidade balneária de fé e claridade.

Chico não atravessa a ponte de São Francisco. Vai de barco para o outro lado do rio, encontrar o coração da Ponta d’Areia. Mas Caymmi também não fala do elevador Lacerda. Podemos colocá-los, então, numa gangorra, no mesmo parque, num sobe e desce, um sorrindo para o outro.

Roubo Risério (1), baiano falando em Caymmi: uma utopia de lugar (2) e, sem saber, o escritor me ajuda a colocar os dois artistas, um no colo do outro. Ou um ao lado do outro, ouvindo e vendo o Brasil das ruas e não dos escritórios; homens e mulheres, meninos e meninas, nas escadarias e não nos elevadores com seus muzaks como trilha sonora.

Mas a distância entre eles é evidente, digo mais uma vez. A mulher de Chico não é a mesma de Caymmi. A de Chico, mesmo quando é bonita como um cavalo, foge qual fumaça, como um pássaro de raça. A de Caymmi se divide em duas: a do mar, mais reservada, e a do samba, mais sensual, aproximando-se das baianas de Jorge Amado, que rebolam e requebram. Talvez como Benigna, de Josué Montello, personagem de Os Tambores de São Luís.

Se trago Josué e Jorge pra conversa é porque também eles escrevem sobre o mar, como Chico e Caymmi. Mas Chico não é Josué, nem Caymmi é Jorge. A diferença entre os compositores é a mesma entre os escritores? Impossível compará-los. Será?

E afinal de contas, a literatura de Jorge Amado é maior que a de Josué Montello? Sim. E a música de Dorival Caymmi é maior que a de Chico Maranhão?

Não. A música de Chico Maranhão é a maior música do mundo porque a música de Chico Maranhão é a música de minha aldeia. E ela se molha, se encharca das águas que banham minha aldeia.

Desculpe se insisto no mar, é que agora quero deixar Caymmi de lado e colocar em seu lugar o compositor Sérgio Habibe, filho de Seu Ruy, que adorava pescar na praia do Olho d’Água. Sinto-me tentado a trazer Sérgio pra perto de Chico.

Olho d’Água já chorou

Cada palmeira era um índio

Olho de boi segredando na areia

E as corais (3)

Sérgio, sete anos mais novo do que Chico, dividiu com ele o palco algumas vezes nos anos 1970 e 1980. Os dois ajudaram a contar e cantar alguns segredos de voos e ventos que vêm e vão e varrem a areia das praias de São Luís, espalhados entre mariscos, caravelas (4) e maçaricos (5). Sérgio, bebendo o Olho d’Água e Panaquatira e, Chico, a Ponta d’Areia e Ribamar.

E é nessas águas que rodeiam, enchem e vazam a cidade, que vislumbro o espaço em que talvez eles mais se aproximem, daí meu desejo de vê-los no mesmo barco, sob a mesma vela e ventania. Atravesso o sol e o sal dessa conversa em silêncio, sem saber o que falam ou o que confessam.

Que o mar os embale até uma terceira margem imaginada de sonhos e cantigas. Que a linha do horizonte costure o amor que eles nem sempre puderam dividir. Um perto do outro/ um aperto de mãoComo dois irmãos/sombras de quem são/Bandeira se levantou no barracão. É o coração. É o coração (6).

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(1) Antropólogo, poeta, ensaísta e historiador baiano (Salvador, 1953), autor de Caymmi: uma utopia de lugar, Textos e tribos, A utopia brasileira e os movimentos negros e Fetiche, entre outros livros.

(2) “Caymmi compôs uma versão idealizada da Bahia. De uma parte, ele ignora o que não se ajusta à imagem diferencial da região….De outra, ele exclui programaticamente de sua poesia os aspectos desagradáveis da vida baiana” (Caymmi: uma utopia de lugar (Perspectiva, 1993).

(3) Versos de Olho d’Água (Sérgio Habibe e Hilton Assunção), uma das canções de Pedra de Cantaria, 1980.

(4) Nome popular das águas vivas, comum nas praias maranhenses, de setembro a novembro.

(5) Passarinhos que comem mariscos na beira das praias de São Luís. Também conhecidos como bebeôs.

(6) Versos de Escravo Coração, canção de Chico Maranhão, gravada no CD São João, Paixão e Carnaval.             

                                       

Chico Maranhão no Teatro Arthur Azevedo, em São Luís, em 2005

Foto: Márcio Vasconcelos

Francisco Fuzetti Viveiros Filho, o querido Chico Maranhão está completando 79 anos neste 17 de agosto. Nascido na Rua de Santo Antônio, centro de São Luís, em 1942, o cantor e compositor, autor de clássicos como Gabriela, Bonita como um cavalo e Diverdade, atualmente está morando em São Paulo. A cidade e o mar é um trecho do livro Lembranças Lenços Lances de Agora – memórias e sons da cidade na voz de Chico Maranhão, que o poeta Celso Borges escreveu e pretende publicar ainda este ano.

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