Lances de Agora: personagens e bastidores

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LANCES DE AGORA: 40 ANOS

Terceira parte

                 Músicos que participaram das gravações do disco Lances de Agora,   de Chico Maranhão,                           em junho de 1978, na porta da Igreja de São Pantaleão

 Bastidores e personagens

O instrumentista Zezé Alves estava começando a aprender flauta na época da gravação do Lances de Agora e era aluno de Sérgio Habibe. Não tocou no disco, mas acompanhou as sessões na sacristia da Igreja do Desterro, entre 22 e 25 de junho de 1978. Zezé lembra-se de pouca coisa: “O que vem à tona agora, de repente, são os sons da vassoura com que o percussionista Rodrigo varria o chão para servir de fundo na música Vassourinha meaçaba, além de um gravador suíço usado na captação do som ao vivo”. Outra lembrança do flautista é que num dos dias de gravação, os músicos saíram pra ver um jogo da copa do mundo: “acho que Brasil x Itália, na disputa pelo terceiro lugar, ou Argentina x Holanda, a final, no dia 25 de junho. Depois, fomos tomar cerveja num barzinho em frente à Igreja do Desterro”.

Da esquerda para a direita: Zezé Alves, Rodrigo Castelo Branco (percussão), Ronald Pinheiro (bandolim), Sérgio Habibe (flauta) e Ubiratan Sousa (violão e arranjos)

O percussionista Rodrigo Castello Branco também se recorda da história da vassoura: “Muita gente estranha o barulho excessivo do ‘chep, chep’ da vassourinha no disco. Mas é que Chico pediu que eu colocasse uns pregos no chão para que o efeito ficasse mais verdadeiro”, afirma. Rodrigo dividiu a percussão com Arlindo Carvalho e o sambista Antonio Vieira. A ele coube fazer as percussões menores do disco.

Amigo de Sérgio Habibe, Rodrigo começou a tocar na segunda metade da década de 1970. Foi um dos integrantes da formação original do Rabo de Vaca, em 1977, quando o grupo, liderado por Josias Sobrinho, fez Saltimbancos, com direção de Aldo Leite. Em 1979 já estava no Rio de Janeiro tentando sobreviver com música, mas menos de 10 anos depois voltou pra São Luís, deixando a percussão pelo meio do caminho.

Rodrigo abre o sorriso quando fala sobre Lances de Agora e recorda de outra história engraçada que aconteceu na gravação, envolvendo Sérgio Habibe.  Um barulho estranho começou a incomodar no meio de uma música e ninguém conseguia detectar de onde vinha. O produtor Marcus Vinícius já tava começando a desmontar o gravador achando que poderia ser algum problema técnico, até que Rodrigo procurando em outros cantos da igreja acabou encontrando a origem do barulho: “Era Sérgio Habibe roncando sutilmente debaixo do altar do Senhor Morto”. Sérgio confirma a história e se justifica dizendo que como as gravações eram demoradas, foi tirar um cochilo.

Outra interferência que costumava atrapalhar as sessões eram as buzinas de carro, que obrigavam a turma a refazer tudo. Numa delas, Marcus Vinícius falou: “Volta, volta, vamos regravar”. Do outro lado, Ubiratan Sousa gritou: “Pode deixar, Marcus, não precisa, ela tá no tom da música”. Rodrigo e Sérgio juram que é verdade. “Basta ouvir o disco, acho que é no final da música Mulher”, afirma Habibe.

Zezé Alves, Sérgio Habibe, Rodrigo Castelo Branco e Ronald Pinheiro

O compositor Sérgio Habibe é um dos grandes companheiros de geração de Chico Maranhão. Dividiram o palco algumas vezes, a principal delas no show I Love You, produzido por Pierre Barroso em 1986. Um pouco mais jovem do que Maranhão, Sérgio foi um dos fundadores do grupo Laborarte, no início da década de 1970. Ele, César Teixeira e Josias Sobrinho fizeram parte do núcleo de música do Labô e juntos começaram a trazer para o universo das canções experiências rítmicas e sonoras que dialogavam com a cultura popular, resultado que direta ou indiretamente desembocaria nas composições do disco Bandeira de Aço.

Além de estudar violão com João Pedro Borges, Sérgio aprendeu a tocar flauta doce na Escola de Música, ainda quando esta funcionava no Monte Castelo. Depois passou para a flauta transversa, no Rio de Janeiro, em meados daquela década, com um professor inglês no ProArte. Quando voltou pra São Luís, começou a dar aulas pra Zezé Alves e Sávio Araújo, que depois passaria a tocar sax.

Na época da gravação do Lances de Agora, Habibe estava passando férias em São Luís. Morava no Morro do Vidigal, em cima do Leblon, zona sul do Rio. Por ali passaram o próprio Chico Maranhão, a jornalista Helena Straus, Rodrigo Castello Branco e o compositor Raimundo Marques. Marques, filho do ex- senador Alexandre Costa, dividiu cerca de dez parcerias com Sérgio, entre elas, Vestido Bordeaux e Do jeito que o diabo gosta, esta última gravada pelo grupo carioca, Céu da Boca, nos anos 1980, e mais tarde pela cantora Fátima Passarinho.

                                     Da esquerda pra direita: Vanilson Lima, Antonio Vieira, Ubiratan Sousa,                                     Chico Saldanha e Paulo Trabulsi, num beco perto da Igreja do Desterro

Um solo de Ronald Pinheiro é uma das passagens mais citadas do Lances de Agora. Acontece na faixa de abertura, Samba Choro, em que o seu bandolim dialoga com o clarinete de Pitoca. Ronald não ia nem tocar no LP, o titular era Adelino Valente, músico experiente, bandolinista do Tira-Teima, que não pode comparecer porque o primeiro filho acabara de nascer. Ronald tinha 20 anos na época e já havia tocado com Chico Maranhão e Sérgio Habibe anteriormente. No final de 1979, Pinha, como é conhecido entre os amigos músicos, mudou-se pro Rio de Janeiro, onde ficou durante cinco anos. Ali, fez parte das bandas de Jorge Mautner e Robertinho de Recife, além de ter acompanhado Elba Ramalho no Sesc Pompeia (SP).

Ronald conta uma história interessante sobre o Lances de Agora. Um dia, já morando no Rio, foi visitar o pianista e compositor Antonio Adolfo e no caminho achou na rua o Caderno B, do Jornal do Brasil, uma página inteira sobre o disco, escrita pelo crítico José Ramos Tinhorão, que elogiava o LP de Chico Maranhão, citando o solo de bandolim em Meu samba choro. Sorri orgulhoso quando lembra disso. Tinhorão, inimigo declarado da Tropicália e da Bossa Nova, é um fã confesso do compositor maranhense.

               Em pé: Ubiratan Sousa (violão), Fernando Cafeteira (violão) e Antonio Vieira (percussão);           sentados: Paulo Trabulsi (cavaquinho), Chico Saldanha e Vanilson Lima (flauta)

Bira e Birão

Para escrever os arranjos do disco, Chico Maranhão chamou o instrumentista Ubiratan Sousa, fundador do grupo Tira-Teima. Bira era uma espécie de maestro da turma e remanescente dos primeiros festivais de música que aconteceram no Maranhão, no final dos anos 1960 e começo da década seguinte. Além de respeitado como instrumentista e compositor, era conhecido por ter inventado uma afinação diferente, chamada “Birão”, em que substituía uma corda MI por uma SI. “Chico trazia sugestões de harmonias e eu fazia os ajustes e os arranjos”, afirma o artista, que considera Maranhão um dos maiores compositores do país.

O diálogo com o produtor Marcus Vinícius se deu sem problemas, segundo Bira. A acústica da igreja era razoável e a gravação correu bem, sem muitas repetições. Em 1980, ele voltaria a trabalhar com Chico Maranhão no disco Fonte Nova.

Em quase 50 anos de carreira, Ubiratan Sousa escreveu mais de 700 composições, populares e clássicas, gravou três LPs e quatro CDs com músicas autorais e produziu mais de 50 discos. Em junho de 2016, representou o Brasil em um concurso internacional de música erudita na França e obteve o 3º lugar com a composição Liberdade em Consonância, orquestração do maestro Wagner Ortiz.

Quem também tocou tanto no Lances de Agora quanto no Fonte Nova foi Arlindo Carvalho, um dos percussionistas mais antigos em atividade em São Luís. Ao contrário de Ubiratan, ele diz que houve muitas regravações por causa dos barulhos e que o gravador tinha apenas dois canais. A outra lembrança é da cara fechada de Chico Maranhão, que quase não falava com os músicos e parecia estar em outro mundo. Arlindo e Antonio Vieira tocaram  reco-reco, cabaça e surdo. Os dois são da formação original do Tira-Teima.

Carvalho conhece bem a obra do cantor e compositor e afirma que Lances de Agora é, poeticamente, o disco mais importante da música produzida em São Luís. Depois desse trabalho e do Fonte Nova, o percussionista ainda tocou algumas vezes com Chico e destaca a turnê de Escravo Coração, na década de 1980, apresentado em São Luís, Rio de Janeiro e São Paulo.

Arlindo trabalha há mais de 40 anos fazendo a base percussiva do coral São João e é um dos idealizadores de três grupos instrumentais da cena musical da cidade: Urubu Malandro, que criou ao lado de Antonio Vieira; Sururu no Galinheiro, de gafieira; e Insensatez, de jazz e bossa nova. Atualmente, também acompanha a cantora Alexandra Nicolas.

Tira-Teima

O instrumentista Paulo Trabulsi não estava na formação original do regional Tira-Teima quando Ubiratan Sousa criou o grupo na primeira metade dos anos 70. Só faria parte da turma em 1976 a convite de Bira que o viu tocar numa roda de samba que acontecia aos sábados à tarde na base do Edilson, no Belira, perto da Madre Deus. Trabulsi ficou no lugar do compositor César Teixeira, dono do cavaquinho na primeira formação do grupo.

Foi um grande desafio pra Paulo porque ele tocava o instrumento há pouco tempo e o Tira-Teima era um time de craques. Além de César e Ubiratan, a formação tinha Chico Saldanha (violão), Fernando Cafeteira (violão), Adelino Valente (bandolim), Antonio Vieira e Arlindo Carvalho (percussão) e Hamilton Rayol (cantor). “Quando fui ao primeiro ensaio, vi que eu era um perna de pau no meio deles”, lembra Trabulsi. Mesmo inseguro sabia que o seu caminho de afirmação e amadurecimento como instrumentista era aquele.

A gravação do Lances de Agora teve uma importância profissional e emocional na vida dele. “O disco ainda continua sendo uma inspiração pra mim. Toda vez que o escuto, me emociono, não somente porque toquei nele mas porque é mágico”. Trabulsi não participou das sessões ao vivo na igreja do Desterro, só gravou na TVE e afirma que o Tira-Teima tocou com todos os seus integrantes somente em duas faixas: Samba Choro e Ponto de Fuga. Lembra que o gravador era pequeno. “Como é que uma porra daquela poderia gravar um disco?”, pensava. A afinação dos instrumentos na época era feita com o diapasão. “Hoje, com a tecnologia, tudo é mais fácil”.

Depois de gravar Lances de Agora, Paulo Trabulsi ainda acompanhou Chico Maranhão em alguns shows, mas deixou de tocar com ele depois de passar num concurso da Caixa Econômica, em maio de 1979. No final daquele ano, começo do seguinte, Bira foi pra São Paulo e fechou-se o primeiro ciclo do Tira-Teima. A Caixa mandou Trabulsi pra Bacabal em 1980 e o grupo só foi retomado, já sem Ubiratan, em 1985.

Dos músicos que tocaram no disco, dois faleceram: Antonio Vieira e Fernando Cafeteira.

Continua

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