Eu sei que você fica preso no ar quando eu canto

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LANCES DE AGORA – 40 ANOS

Quinta parte

A primeira vez que ouvi uma canção de Lances de Agora foi pelo rádio, em 1979, num programa apresentado por César Roberto na Difusora AM, acho que Discoteca Alucinante. Foi nesse programa também que escutei deslumbrado a voz de Fagner cantando Flor da Paisagem e Motivo, além de Milton Nascimento e Beto Guedes interpretando Fé cega, faca amolada. Entre os internacionais, Genesis (I know what i like), Pink Floyd (Time) e Led Zepellin (Stairway to heaven). Não conhecia a maioria dessas músicas e quase todas eu nunca tinha ouvido tocar em rádio alguma. Foi César Roberto, com sua juventude e um jeito muito pessoal de se comunicar, que abriu algumas janelas do meu ouvido e de minha alma para o que tava acontecendo de diferente na música popular brasileira e no rock and roll.

No final dos anos 70, eu ainda morava no centro da cidade, Rua da Paz, 350, em frente à igreja de São João e tinha acabado de passar no vestibular de Comunicação Social na UFMA, depois de dois anos cursando Engenharia Civil na antiga FESMA. Saía definitivamente da barra da saia da mãe e descobria um mundo novo de música e literatura, além de participar de política estudantil. Na minha biblioteca, A Ilha, de Fernando Morais; Poema Sujo, de Gullar; Canto Geral, de Neruda; Cleo e Daniel, de Roberto Freire; Damian, Sidarta e Lobo da Estepe, de Herman Hesse; Erva do Diabo, de Carlos Castañeda, entre outros livros que colocaram definitivamente a poesia no meu colo, como uma bomba que explodia na alma juntamente com o amor e o desejo.

Foi no meio desse redemoinho, perigoso e cheio de luz, que me dava febre ao beijar a boca de Rose e Débora, que ouvi Chico Maranhão cantando as primeiras notas e versos de Meu Samba Choro, faixa que abre o LP Lances de Agora:

Vai meu samba choro/Vai dizer pra essa menina /Que devolva o meu tesouro no seu peito de menina /Hoje ela zomba provocando desafio/Não quer saber se eu passo fome ou passo frio/Seu abandono me deixou triste e vazio/Vou lhe contar/Eu vou lhe contar

A forma como Chico cantava, as palavras, o sotaque, traziam uma cidade que me pertencia. Eu podia ouvir e sentir um mundo que de alguma forma dialogava com os versos de Gullar (Poema Sujo), de José Chagas (Os Canhões do Silêncio), Bandeira Tribuzi (Breve Memorial de um Longo Tempo), escritores que começava a ler naquele mesmo momento e cujos versos tinham São Luís como motor. Eram mundos e poemas que se atravessavam como linguagem e diálogo poético, me mostrando uma nova forma de falar sobre o lugar onde nasci.  Nunca mais fui o mesmo e minha relação com a cidade tornou-se visceral.

As canções que Francisco fez

O cancioneiro de Chico Maranhão é povoado de homens e mulheres comuns, motores da vida cotidiana da cidade: o verdureiro, o alfaiate, a coreira, o brincante de boi, os fofões e cazumbás, personagens que andam e dançam pelas ruas, becos, calçadas e bairros de São Luís: Cirano, Regina, Gabriela, “Seo” Raimundo etc. Suas composições têm cheiro, vento e claridade. Chico nomeia as coisas da ilha de uma forma que é possível sentir o vento que a embala, o sol que a clareia e a água que a banha.  Nunca ninguém fez isso do jeito que ele fez, nem antes nem depois.

Há em suas letras um bordado sobre a geografia de São Luís, um desenho de suas praias, areias, sopros e águas, da chuva, mar e rio, que a atravessam e molham e triscam as paredes e chãos da cidade e suas quebradas com seus bichos, aranhas, jabutis, cachorros e carcarás e o carvão que borra de preto e cinza como um pixo de outros tempos nos muros que se levantam e se arrastam, entre limos e mururus, dividindo o nada, que é tudo, sob o céu azul.

Chico Maranhão canta um tempo que não existe mais, mas ainda assim um mundo vivo chapado de ancestralidade, algo que não se vê, mas se sente, como um rio de sangue que nos bombeia o coração por meio de sua voz:  Ê Ponta d’Areia, há muito tempo que eu não te vejo! É claro que essa percepção passa pela ligação afetiva de muitos anos que tenho com a obra dele. Minhas primeiras lembranças musicais nasceram com o boizinho Brejeiro. Meus irmãos mais velhos, Fátima, Antonio José, Goretti e Amélia, brincavam no boi e recordo das noites nos anos 60, na casa da rua da Paz, em que acordava ouvindo aquelas toadas que D. Camélia recolheu e adaptou em suas andanças pelo interior do estado.

A intensidade desse canto (a voz e o lugar) e a forma como o artista o descobre e o desvenda é que tornou possível a criação das canções de Lances de Agora. Ali pode se sentir e ouvir o espanto que o sacudiu na infância ao ver Zé Negreiro socando tambor. Todo o disco é uma resposta ao silêncio que Chico guardou dentro dele quando o curandeiro acabou de tocar. A alma do silêncio do tambor. No que ele se transformou dentro de Chico. Mais de 30 anos depois ele criaria o seu próprio Tambor de Crioula, a Turma do Chiquinho, calando o silêncio de Zé Negreiro para que a gente pudesse ouvir.

Tudo isso me vem à cabeça quando penso em Chico Maranhão e na obra que ele elabora há mais de 50 anos. Simplicidade e densidade para falar de um lugar no tutano do mundo, que é dele e que é nosso, alma e matéria de uma cidade ilha onde nascemos.

No último dia 18 de agosto, o artista completou 76 anos. Parabéns, Chico Maranhão! Eu fico preso no ar quando tu cantas.

continua na próxima postagem (sexta parte) 

 

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