As letras e canções de Lances de Agora

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LANCES DE AGORA – 40 ANOS

Sexta parte

 A música produzida no Maranhão entre 1969 e 1984 é 15 anos de ouro puro: Chico Maranhão, César Teixeira, Sérgio Habibe e Josias Sobrinho formam um quarteto de compositores geniais. Isso sem falar em Giordano Mochel, Chico Saldanha, Zé Pereira Godão e Ubiratan Souza, que começaram a produzir mais ou menos naquele momento, ou um pouco depois, como é o caso de Godão. É interessante observar que não há em nenhum deles traços visíveis do tropicalismo. A guitarra tropicalista, por exemplo, é completamente ausente nas poucas gravações e shows que fizeram naquele período. Não há transgressão pop e não bebem dos estilhaços do mundo urbano (ou bebem de forma muito particular). A fonte das canções que eles escreveram vem essencialmente da cultura popular e, um pouco menos, do samba.

Com raras exceções, não existe na música desses artistas ironia, ‘mau gosto’, pindorama ou antropofagia. Talvez pelo fato de São Luís ser literalmente uma ilha e esses compositores  pouco dialogarem além fronteiras, mesmo os que moraram no sul sudeste, como Chico, Sérgio, Mochel, Josias e Saldanha. A melodia e os acordes que produziram quando jovens mantiveram uma sonoridade local com características muito diferentes do restante do país. O Maranhão sempre produziu uma cultura popular forte e isso marcou profundamente cada um desses criadores.

É uma pena que esse ‘corpo musical’ não tenha conseguido de alguma forma se projetar nacionalmente como, por exemplo, o Pessoal do Ceará (Fagner, Belchior e Ednardo) ou os pernambucanos, liderados por Alceu Valença, todos eles contemporâneos dos maranhenses. Talvez o nosso cancioneiro não tenha tido um grande produtor musical que traduzisse o que elaboramos com tanta originalidade naquele momento. A sonoridade do disco Bandeira de Aço (Papete, 1978) anunciou, ainda que timidamente, uma possibilidade de descoberta de nossa música pelo resto do país, mas isso não teve continuidade, muito por conta do desentendimento entre os autores das faixas do LP, Papete e o dono do selo Marcus Pereira. Além da desinformação com relação aos direitos autorais, uma das causas do rompimento, os compositores maranhenses não aceitaram serem excluídos da concepção sonora da produção do disco e não ficaram satisfeitos com o resultado final.

Cesar Teixeira, no estúdio da TV Educativa, e Josias Sobrinho, fundador do grupo Rabo de Vaca. Fotos: Murilo Santos

Outra particularidade dessa geração é que ela não elaborou manifestos e conceitos que dessem unidade a algo que sugerisse um movimento. Não houve entre eles um poeta ou letrista que simbolizasse conceitualmente a música que fizeram, como foi o caso da Bossa Nova (Vinícius de Moraes e Newton Mendonça) e da Tropicália (Torquato Neto e Capinam). Eles são os próprios poetas, grandes poetas, todos caminhando o seu próprio caminho. Acredito que os desdobramentos do tropicalismo só apareceriam no Maranhão em poucos compositores que surgiram nos anos 1980, principalmente Zeca Baleiro.

Lembranças, lenços, lances de agora

Não costumo guardar somente livros em estantes e mesas de cabeceira. Entre o real e o imaginário é lá onde ponho minhas doces quinquilharias, pequenos animais lúdicos e, por fim, meus discos preferidos, sobretudo os vinis. Dedico a eles o mesmo zelo de um menino ao colecionar suas bolinhas de gude coloridas e carrinhos de brinquedo. Num arsenal sonoro que ainda mantenho de quase 300 LPs, quatro são do compositor Chico Maranhão, entre eles, Lances de Agora e Fonte Nova. A sonoridade  “precária” desses dois discos, produzida principalmente por um som torto e denso, sem virtuose, mas nem por isso menos comovente, Chico Maranhão nunca mais alcançaria.

Contracapa de Lances de Agora, lançado em 1978 pelo selo Marcus Pereira

Lances de Agora tem na contracapa texto assinado pelo publicitário e diretor da gravadora, Marcus Pereira, mas o LP não traz encarte com as letras das 11 canções. Como o discurso e a poesia de Chico Maranhão são carregados de um sotaque maranhense, com algumas particularidades linguísticas, e a qualidade técnica do disco dificulta em vários momentos o entendimento de certas palavras, a publicação das letras torna-se imprescindível para uma percepção mais apurada dos versos do artista e do seu jeito de falar e cantar as coisas e personagens da cidade. Mesmo quem conhece bem Lances de Agora, vai descobrir, aqui e ali, novas palavras na leitura das letras das canções.

Chico Maranhão – Lances de Agora (1978)

  1. Meu samba choro
  2. Lances de agora
  3. Ponto de fuga
  4. Cirano
  5. Mulher
  6. Frevo do barulho
  7. Boi, meu menino
  8. Velho amigo poeta
  9. Ponta de areia
  10. Vassorinha meaçaba
  11. Pastorinha

Samba Choro

Vai meu samba choro
Vai dizer pra essa menina
Que devolva o meu tesouro
No seu peito de menina
Hoje ela zomba provocando desafio
Não quer saber se eu passo fome ou passo frio
Seu abandono me deixou triste e vazio
Vou lhe contar
Eu vou lhe contar
Saiu de casa sem dizer pra onde ia
Não dá notícias não dá
Não quer saber se me dá saudade
Diga lá, diga lá
Se apressa a pressa que a tarefa
que hoje é tanta
Ela se nega e isso me espanta
Essa menina só me sabe dá desfeita
Meu peito é pranto
quando vê que não foi feita
A lamparina que ilumina a ceia
A amizade sem olhar a receita
A arruela que pertence à peça
Do aparelho que conserva aberta
A minha turma que não se curva
A nossa caixa que não se fecha
Meu camarada gaste seu conforto
A sua lábia seu lápis seu forro
Esse verniz que lhe passaram em torno
A sua mão que nunca foi no forno
O derradeiro minuto
O ouro inteiro do mundo
Mas não me deixe levar
Mas não me deixe levar
Seu coração bate de vagabundo

Samba Choro revela duas grandes influências na obra de Chico Maranhão, o samba brasileiro da turma de Noel Rosa, Cartola, Ismael Silva e Lamartine Babo, e o choro que nasce no Rio de Janeiro, no final do século 19, resultado da diversidade sonora africana em pleno diálogo com valsas e polcas da música européia. A letra é um discurso amoroso de abandono, de tristeza, acompanhado por versos de grande qualidade poética, na melhor tradição das belas letras da música brasileira. No meio desse samba choro, antes da repetição da segunda parte, uma pausa no discurso para a realização de um belo diálogo entre o bandolim de Ronald Pinheiro e o clarinete de Pitoca, frases melódicas que chamam atenção e marcam quem quer que ouça o disco.

Lances de Agora

Vá e leva a vida
Sem dizer que leva a minha vida sem querer
Vá e leve tudo que puderes
Faca coração colheres
separa teu prazer
Pra mim continua o mesmo fio de manhã
Na fábrica na rua no tear da artesã
Vá e leva tudo que te acorda
Rede onças canivetes cordas
Vá e diga aos outros
Que não gosta
Corta não se importa
Sai da porta
Vá mas volte se na horta
não tiver legumes para a torta
Vá e leve as mãos
Lembranças lenços lances de agora
Quem esquecer o amor
Verá varrer de si o seu cantinho ô
Quem gosta não faz favor
Com a vista aberta mostre a certa
O que falou
Vá e leva a vida
Sem dizer que leva a minha vida sem querer

Um samba típico da bossa nova com clara influência da batida do violão de João Gilberto. Chico canta conversando com o ouvinte: “pra mim continua o mesmo fio de manhã na fábrica na rua no tear da artesã…”. Letra bem trabalhada com uma sequência perfeita de rimas e aliterações. E um dos versos mais lindos da música brasileira: “Quem gosta não faz favor”.

Ponto de Fuga

Diga que o samba não é tua vida
Que o samba não te dá comida
Que o samba não bole contigo
Diga que o samba não é companhia
Que a roda de samba agonia
Que a Turma do Quinto é castigo
Mas diga também
Que quando te falta alegria
Procuras a fundo no dia
Um samba pra ser
o teu arrebém
E fique também pensando
que um ponto de fuga
Por ser pequenino não cruza
Com as retas mais curvas que o mundo tem
Diga que o samba não é tua vida
Que o samba não te dá comida
Que o samba não bole contigo
Diga que o samba não é companhia
Que a roda de samba agonia
Que a Turma do Quinto é castigo
Mas diga também
Que a boca que fala não lembra
Que quando escorrega relembra
O passo maior que o sambista tem

Uma reverência do artista ao samba, gênero musical muito presente na obra de Chico Maranhão. Vale lembrar a citação da Turma do Quinto, escola de samba do bairro da Madre Deus, berço de grandes sambistas e manifestações da cultura popular maranhense.

Cirano

Cirano sorria, tossia, sorria,
tossia, sorria, tossia sorria
Acendia o cigarro sentado sem graça
Numa poça d’água da velha calçada
Defronte a vidraça
Da nova vitrine sorrindo pensava
Soltando fumaça
Que embora a cabeça
Pareça hoje em dia que pensa sua pança
Vadia, vazia
De quem já fez tudo na vida
Já foi de pular corda
Fazer samba de roda
Já foi de por gaiola já foi
foi menino de roça que foi
Descobrindo, descobrindo
Que a barriga pra se encher
Precisa briga
E o salário da comida nunca sobra depois
Cirano
Cirano foi rei de sua vontade
Tinha tanta coragem
Pra ser um Bonaparte
Mas na história da arte se foi
Só foi alfaiate que foi
Costurando, costurando
Dando ponto e pro freguês mais o desconto
E foi sabendo portanto
E foi sabendo que tinha que viver do esforço
Da peça do pano do dinheiro do moço
Do corte do vinco, da calça, do bolso, da bossa, da prova
Do esboço da fantasia e da moda
Da freguesia que concorda sem saber porque
Do molde, aquele molde que mudou
Do novelo e do linho
Da agulha que o tempo enferruja
Da luta sem conta
Do amigo que encontra no caminho
Da hora do ajudante intrigante
Sabia do roubo
E com segurança que o tempo avança
E o que é velho descansa
Na breve lembrança do povo
Mas o que Cirano não sabia
Era do golpe que o homem recebe
Daquele que nada consegue
Do ácido ferro que fere
O peito de quem se apercebe
Da luta da greve do viver

Chico homenageia um alfaiate chamado Cirano, personagem cujo ofício é hoje cada vez mais raro nas grandes cidades. Acompanha o seu dia-a-dia, a dura existência dividida entre o novelo e o linho e o ácido ferro que fere a sua existência. A canção é dividida tem três partes: começa com um frevo, seguido por um samba e, por último, uma marcha. Cirano também foi gravada no primeiro disco solo do compositor, em 1974.

Mulher

Mulher
Eu nunca vou me convencer
Que é por causa desse meu viver
Que foges qual fumaça
Como um pássaro de raça
Que caçado se arrasta
Pelas brenhas, pelas matas,
cordilheiras e sertões
Sermos da mais alta solidão
Porões, entre os gabirus e os jabutis
Deixando-me perdiz, inútil carcará,
No ninho de raiz
Selvagem como um índio carajás
Que nas águas do seu igapó
Se dá como um todo
todo tempo  e só
Sabendo que a flecha
Rasgas as águas em pedaços
Fere as tábuas lá embaixo
Traz o peixe como um laço
que à tona vem mostrar
Praias novas para se acordar
Calhau, quando as águas baixam têm lugar
O sangue destas veias
Põem as velas no lugar
Os bancos de areia
Eu conheço só de olhar
Este barco está no mar
Venta loló, presse barco andar
Venta loló, presse barco andar

Uma canção de amor e ternura que saúda com um lirismo ímpar o universo feminino, perdido e enredado na beleza desse pássaro de raça, que foge qual fumaça e caçado se arrasta pelas brenhas, matas, cordilheiras e sertões. É pouco provável que o cancioneiro brasileiro tenha alcançado em outro compositor originalidade tão grande como nessa letra/poema em que Chico expande sua lírica para o seu próprio universo existencial.  O discurso também lança faróis sobre algumas dificuldades da convivência amorosa. No final da canção, Chico pede ajuda à natureza para seguir tentando porque o barco da existência está no mar e ele precisa seguir: venta, loló!

Frevo do barulho

Hoje vai ter frevo, sim, senhor
Frevo, sim senhor, barulho
E se for preciso, meu senhor
Carregue seu amor seguro
Frevo de bacuri, de buriti
de murici, de molho
Solta e ferrolho
Bota no chão sorvete de coco gostoso
Teimoso
Levante seu cata piolho
Pode jogar a semente no peito da gente Tá ultimamente
Estado de nervo nervoso
Não se esqueça seu cachorro
Que frevo não passa
Nem é frevo, não ferveu
E nem mesmo teve o abano, o abano do povo

Outra influência muito clara na obra de Chico Maranhão é o frevo. Gabriela, uma de suas músicas mais conhecidas, premiada no festival de TV Record, em 1967, é um frevo, gênero que também está presente em outros discos do compositor. A letra, lúdica, de Frevo do barulho cita algumas frutas típicas do Maranhão, como bacuri, buriti e murici, além do tradicional sorvete de coco, vendido nas ruas da cidade.

Boi meu menino

Um dia assim seremos menos ilusão
Um dia assim de outra maneira alazã
Além dos muros descaídos dessa história
Outros encontros nós teremos amanhã
Negras manias que eu tenho de querer
Os olhos quentes junto a mim a incendiar
Essas idéias que nos une a mesma mesa
Todos os dias que se pode conversar
Falar, falar, falar, assim
Anunciava neste mar
Mas até quando esta noite vai durar
Durar, durar, durar, assim, durou
é madrugada e já urrou
de manhãzinha boi por dentro da Maioba
Radiante é raça nova
Deixa essa barra dançar, dançar, dançar,
Dançar, dançar, dançar até morrer
Dança, boi meu menino
Dança, garrote divino
Enquanto a morte ceder
Mostra todos os caminhos
Teus chavelhos teus olhinhos
Pra esta nação aprender dançar, dançar
Dançar, dançar, dançar, até morrer

O universo do boi é tratado aqui de forma muito terna, como se o boi fosse um menino, uma criança.  Como se só ele com seus olhinhos pudesse mostrar e ser o guia para “esta nação aprender a dançar, dançar, dançar, até morrer”.

Velho amigo poeta

Velho amigo poeta, bom dia pra ti,
nesta manhã incerta, onde eu aprendi
que a vida é qualquer embarcação
sobre o mar da tormenta da paixão,
como vai o teu riacho de aluvião,
aonde os barcos são pedras de carvão,
que acendem assando o pão da poesia irmão,
me conta como vão os teus pezinhos de Romão,
e aquele mamoeiro macho sem razão,
que embaixo a seiva mata tuas impingens com algodão…

Caro amigo poeta, um beijo pra ti,
como vai meu colega, como vais aí?
como vai tua casa, teu clangor,
como vai tua paz interior,
como vai o teu porão de raro esplendor,
onde um lenhador,
carpinteiro é dada a arrumação do fogo incendiador,
do rumo das caldeiras mortas do nosso motor,
senhor dos parreirais de brasa e de calor,
amigo, irmão, papai, primeira lágrima de amor…

Como vai teu filho, teu querido filho?
teu retrato de criança, ramo do buquê da infância,
a rolar pelo capim, a correr pelo capim, a brincar pelo capim.
Me conta de lá, dos teus rios onde as margens correm pra beber,
me conta de lá, dos teus mares onde as ondas são de cabarés,
me conta de lá, dos teus olhos onde as covas são da viuvês…
me conta de lá, das pitangas, do ingá,
do cupim, da mambira, do camurupim
da guariba, do papa-capim, dos garités…
das travessias que não davam pé.

Como vão as torqueses de nervos à cata do coração?
Como vão as toalhas de mesa dos fins de conversa da Viana Vaz?
Como vai nosso sonho de linho, gomado a ferro morno, tostãozinho?
Como vão as sandálias que calças com arte, fivela pra fora da parte
da perna da calça, a única causa que tens no chão?

Depois de se formar em arquitetura em São Paulo, nos anos 1960, e de participar da cena musical brasileira no período dos festivais, Chico Maranhão volta a morar em São Luís no início da década seguinte, em busca de suas raízes musicais. Nesse momento conhece a escritora Arlete Nogueira da Cruz e seu companheiro, o poeta Nauro Machado. Houve uma época em que ficaram tão próximos que Chico ia visitá-los frequentemente na casa onde moravam, na rua Viana Vaz, uma das travessas da rua dos Prazeres, centro da cidade, próximo ao Jenipapeiro e à Camboa. Velho amigo poeta é uma lembrança afetuosa daqueles encontros com o casal e da cumplicidade que se estabeleceu, principalmente entre Chico e Nauro. A letra da canção lembra das toalhas de mesa, do mamoeiro macho no quintal, das sandálias que o poeta calçava com arte, fivela pra fora da parte da perna da calça, a única causa que tens no chão, entre outras imagens de pura poesia. O poeta confessaria mais tarde a Arlete que poucas coisas na vida lhe trouxeram tanta emoção quando Velho amigo poeta. Além do aspecto afetivo, Nauro destacava a qualidade e a construção perfeita do texto. Quase trinta anos depois, em 2004, o poeta homenagearia Chico Maranhão na parte final do livro Pão maligno com miolo de rosas: Chico velho, pulso firme/poeta irmão, em cabaré/para amparar-me no meu ir-me/aonde as águas não dão pé,/Chico velho, muito mais/que a rua toda, e sobretudo/a noite na Viana Vaz/sobre o meu coração mudo/……./Chico velho, nos Prazeres,/Chico velho na Alegria,/Chico velho, orai por eles,/Fontenelle e Zé Maria.

 Ponta d’areia

Ê, Ponta d’areia
Há muito tempo que eu não te vejo, não
Capim verdinho levantando na cerca
Asfalto preto travessando a areia
Parede roxa quando nasce afundeia
Água na coxa trepadeira na telha
Fogo na boca mecanismo da veia
Surra o cachorro peixe seco na grelha
Morrendo pouco cada dia na mesma
Na mesa
Ê, Ponta d’areia
Há muito tempo que eu não te vejo, não
Caranguejeira namorando a parede
Moça bonita desarmando a rede
Nasceu de novo palmeirinha contente
Viva o caroço que sustenta a gente
Olho no prato esperança na frente
Olha o borralho esquentando ausente
Morrendo pouco cada dia depende
Da trempe
Ê, Ponta d’areia
Há muito tempo que eu não te vejo, não
Pequena América da minha pobreza
Adormecida na própria natureza
Numa esquina brasileira surpresa
Nasceu menina comendo farinha seca
No fundo no fundo no fundo
Da nossa cabeça

Até 1970, antes da inauguração da ponte de São Francisco, quem quisesse ir até a praia da Ponta d’Areia, teria que atravessar o Rio Anil de barco. As embarcações eram pequenas e nos feriados e finais de semana eram comuns pequenas filas para fazer a travessia. Seu Viveiros e D. Camélia, pais do compositor Chico Maranhão, tinham uma casa naquela praia onde a família passava as férias desde o final dos anos 40. Quando começou a fazer música, essa era uma das paisagens presentes na alma do artista. Ponta d’Areia foi composta na primeira metade dos anos 70, quando Chico voltou a morar em São Luís, depois de viver quase 10 anos em São Paulo. Mais do que uma homenagem e lembrança de infância, o refrão: Ê, Ponta d’areia, há muito tempo que eu não te vejo, não… É talvez um lamento pela perda de um tempo e de um espaço de vivências que ficaram para trás e que só por meio da música é possível recuperar.

Vassourinha meaçaba

Vassourinha meaçaba que varre o chão
Varre esta saudade braba do meu coração
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre a sala
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre o quarto
Se meu amor me quisesse
Não faria como faz
Foge de mim e se esquece, rapaz
Vassourinha meaçaba que varre o chão
Varre esta saudade braba do meu coração
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre a sala
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre o quarto
Quem foi que viu por aqui
Uma feição miudinha
O meu amor diz que vi
Vassourinha meaçaba que varre o chão
Varre esta saudade braba do meu coração
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe varre a sala
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre o quarto
Perguntei lá da montanha
Pro vento que vai e vem
Vento que vem da Espanha, meu bem
Vassourinha meaçaba que varre o chão
Varre esta saudade braba do meu coração
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre a sala
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre o quarto
Fiz um barquinho a vela
Pra sair com meu amor
Ele falou da janela, não vou
Vassourinha meaçaba que varre o chão
Varre esta saudade braba do meu coração
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre o quarto
Chepe, chepe, chepe, chepe, chepe, varre a sala
Convidei meu querubim
Pra ver o cocorocó
Ele falou-me assim: vai só
Vassourinha meaçaba que varre o chão
Varre esta saudade braba do meu coração
Chepe, chepe, chepe, chepe, varre a sala
Chepe, chepe, chepe, chepe, varre o quarto
Até uma formiguinha
O quanto te espero
Minha vida, minha quero
Vassourinha meaçaba que varre o chão
Varre esta saudade braba do meu coração

Parte da obra de Chico Maranhão é recheada de canções lúdicas, herança do universo infantil e onírico que herdou de sua mãe D. Camélia, idealizadora do Boi Brejeiro, auto de bumba-meu-boi infantil construído a partir de vivências musicais em São Luís e no interior do estado. A casa onde morava a família Viveiros era o palco onde aconteciam os ensaios. O Brejeirinho era encenado no Teatro Artur Azevedo, em São Luís, nos anos 50 e 60 do século passado. Camélia Branca Costa de Viveiros (1906–1970) era professora de jardim-de-infância, fundadora de escolas públicas nos municípios maranhenses de Matões, Bacabal, Guimarães e Vitória de Mearim. Sua atuação nessas cidades foi em decorrência das transferências do marido, que era coletor e fiscal de rendas. A formação artística e cultural das crianças foi sua grande preocupação. Autodidata e estudiosa, D. Camélia recriou em linguagem infantil as manifestações culturais locais. Sua outra preocupação era com a natureza, tanto que as escolas que fundou ou às quais prestou serviço têm a “árvore de D. Camélia”, todas elas cultivadas e referenciadas em sua época e ainda hoje.  Chico bebeu nessa fonte, aprendeu pelas mãos da mãe a passear nesse universo que tinha, além do boi, o circo, a feira e as brincadeiras populares. Vassourinha Meaçaba é filha dessa herança.

Pastorinha

Cadê a pastorinha
que saiu da linha por uma varinha
Que dá na torrinha do amanhecer
Cadê ela minha filha que fez a quadrilha
Numa armadilha toda endoidecer
Toc, toc, toc, toc, toc
Leva um doce quem souber
Toc toc, toc, toc, toc
Lá vai ela como quer
A lua que é minha amiga
Vai fazer figa pra não ter briga
Pra ver quem fica com a espiga
e o doce cica vai pra barriga
Desse botica que responder
Será que essa pastorinha não fez uma linha
Jogando pedrinhas pra não se perder
Toc, toc, toc, toc, toc
Leva um doce quem souber
Toc toc, toc, toc, toc
Lá vai ela como quer
Eu vou passar a noite inteira nessa brincadeira
Com uma baladeira e uma ratoeira de adivinhação
Quem souber que venha correndo
O rato começou roendo, roendo
O doce do seu coração
Toc, toc, toc, toc, toc
Leva um doce quem souber
Toc toc, toc, toc, toc
Lá vai ela como quer

Uma das canções mais famosas de Chico Maranhão, da mesma linhagem lúdica de Vassourinha meaçaba. Tem um ritmo junino, uma quadrilha, uma brincadeira infantil cuja personagem principal é uma pastorinha. No vocabulário, palavras do mundo infantil do artista, comum nas brincadeiras juninas, principalmente nas quadrilhas.

UM SAMBA DO NOVO DISCO – CD DUPLO CONTRADIÇÕES

 

 Filho d’uma égua

Só mesmo sendo muito filho d’uma égua
Pra roubar sambas, poemas ou canções
Poetas merecem respeito
Por mais pobre que seja seu leito
Por mais pobre que seja seu chão
Não lhe considero mais
Nem mais estenderei a mão
Coisas de poeta
Não cabe qualquer tradução
Muitos já cultivaram a mania
De puxar da periferia
Uma brasa pra sua sardinha
Mas isso para nós aqui de casa
É meter a mão no povo
No caldeirão da vizinha
Mané Garrincha já contou
A nossa história
Brasileiro que é bamba
Já nasce com sua chama
Bate bola, bate samba
E não perde sua glória

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