Nos labirintos da cidade

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Por Luiz Iácio Oliveira Costa (professor do curso de Filosofia da Ufma)

 

“Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer aprendizagem”. (Walter Benjamin)

 

Marçal Athayde é um artista disciplinado e inquieto. Esses dois traços de sua personalidade artística conseguiram se combinar numa espécie de equilíbrio delicado. Dessa tensão de opostos (disciplina/inquietação) parece vir a energia vital que mobiliza os seus processos criativos e toda a construção do seu trabalho. A disciplina do artista não está apenas na dedicação cotidiana ao prazer do seu ofício: ele bate ponto quase que diariamente no seu ateliê como um operário na oficina dos dias, não por obrigação de ofício mas por uma inteira disponibilidade a esse trabalho. A disciplina está, sobretudo, na entrega às possibilidades que lhe oferece a sua arte, na pesquisa e na exploração dos materiais e das formas expressivas. Dessa disciplina cuidadosa, quase carinhosa, diante das possibilidades plásticas oferecidas pelos materiais faz parte, por exemplo, o interesse de Athayde pela escultura em madeira depois de anos de dedicação à pintura ou, ainda, o recurso à pintura a óleo como um meio técnico para ele ainda rico em possibilidades. Nessa atenção às potencialidades expressivas dos materiais já se deixa ver, por trás do que passaria sobriamente por disciplina, a inquietação do artista. Inquietação com os temas e questões que lhe perseguem e lhe provocam e com as possibilidades de dar expressão a eles em linguagens plásticas tão distintas como a pintura (o universo da bidimensionalidade) e a escultura (a estrutura da tridimensionalidade). Inquietação que levou Athayde a buscar transpor uma das obsessões de sua pintura (a velocidade e a fugacidade do movimento) para o plano tridimensional rigoroso da escultura. Inquietação que se apresentava sob a forma de um desafio: como por o movimento dos corpos na estrutura resistente da escultura em madeira? A mesma inquietação marcou o retorno de Athayde à pintura. Nos últimos trabalhos do artista, ela foi convocada a desvendar, quase flagrar a cidade, suas paisagens despercebidas, seus labirintos. Tanto a cidade de São Luís, com seus labirintos de memória e imaginação (a memória não é também uma forma de imaginação?), quanto o Rio de Janeiro, a cidade em que Athayde vive há décadas, cidade-labirinto de todas as contradições brasileiras, purgatório da beleza e do caos, alguém já cantou. Na exposição que recebe justamente o nome instigante de Labirintos onde me perco, o artista nos oferece uma mostra desse seu percurso vigoroso e rigoroso (nada a ver com rígido!), também desse seu olhar inquieto para o labirinto das cidades.

Num momento em que as artes visuais jogam com o espaço aberto pelas mídias digitais e eletrônicas e brincam com a fusão de linguagens e no qual alguns se apressariam em decretar a morte da pintura, dá a pensar o gesto intempestivo de Athayde de ter coisas a expressar numa forma de linguagem da tradição como a pintura figurativa (e a escultura). Não há decretos de morte que possam ser baixados quando as linguagens mantêm a sua inquietação por novas formas de expressar. A pintura foi de algum modo redescoberta na arte de rua e uma linguagem instigante emergiu dessas manifestações de arte urbana. A já velha crise da pintura, Athayde a enfrenta também com o gesto insistente de quem quer redescobrir nas formas tradicionais linhas de fuga desconcertantes, semelhantes àquelas que seu olhar sobre a cidade nos revela. Olhar que às vezes se aproxima justamente – e surpreendentemente – de alguns artistas de rua. E também de alguns artistas dos quadrinhos.

Os últimos trabalhos em pintura de Athayde compõem algo que se poderia reconhecer como uma provocativa poética da cidade. Essa pintura deve muito aos processos poéticos que estão nas suas origens. De um lado, são processos de rememoração poética da cidade da infância, a cidade de São Luís – e essa rememoração se faz como imaginação poética que transforma a cidade em imagem estranha e perturbadora (“Bela, estranha e perturbadora São Luís”, título de um dos trabalhos da exposição, uma pequena panorâmica noturna de São Luís, lembrando que o título foi tirado de uma frase atribuída justamente ao poeta da memória Pedro Nava quando este visitou a cidade). De outro lado, são processos de perambulação e deriva do artista-poeta pela cidade do Rio de Janeiro (e também de São Luís) e, por esses processos, a cidade ressurge em flagrantes e fragmentos poéticos igualmente estranhos e perturbadores. A exposição destaca os dois tempos dessa poética da cidade: uma primeira sala, na abertura da exposição, abriga as obras dessa rememoração/imaginação poética de São Luís; na outra sala, encontramos os fragmentos poéticos da cidade colhidos pelo artista que se deixa perder nos labirintos urbanos de um Rio do século XXI. Os quatro trabalhos escultóricos fazem a ligação entre as salas e entre os dois momentos dessa poética. A maior das esculturas está exposta no pátio do Museu Histórico e Artístico e esse espaço mais aberto faz justiça a ela: temos distância suficiente para nos confrontarmos com o arrojo do artista em expor na madeira a tensão de corpos em movimento, para nos surpreendermos com as formas que o ímpeto do movimento dos corpos pode ganhar na madeira.

No painel-montagem da primeira sala, a velha São Luís aparece como uma cidade submersa que escafandristas poderão vir explorar. Não apenas uma cidade submersa, mas uma cidade atingida por uma catástrofe: um boeing destroçado repousa ao lado da igreja da Sé, a ponte do São Francisco foi bombardeada e aparece num canto o retrato do poeta Nauro Machado como um vestígio. O azul-cinza com que Athayde envolveu a cidade afundada nos faz vê-la de repente como uma cidade fantasma. Essas imagens de São Luís submersa como uma Atlântida pós-apocalíptica se oferecem como cartões-postais às avessas: querem revelar a destruição violenta das velhas cidades pós-coloniais com seus centros históricos que não conseguem encontrar um lugar no admirável mundo novo do século XXI a não ser que se transformem num belo cenário em ruínas para a visitação turística, uma das formas privilegiadas do entretenimento/consumo predatório contemporâneo.

Mas essas imagens de uma São Luís fantasmagórica nos fazem lembrar também que uma cidade é feita de muitas camadas de tempo, camadas arqueológicas de nossa memória (e de nossa imaginação). Athayde revolve e remove essas camadas profundas e São Luís ressurge enfim afundada como nas nossas lendas e mitologias da cidade a ser engolida pelo mar. “Uma cidade muda mais rápido que o coração de um mortal”, diz um verso de Baudelaire sobre a velha Paris moderna do século XIX. As cidades se transformam, às vezes violentamente, morrem e renascem dos seus escombros, são matéria histórica, espaço de memórias, imagem de nossos medos e desejos. São habitadas por cidades invisíveis como as inventadas pela imaginação poética de Ítalo Calvino. Uma metáfora não tão usual para o movimento da memória poderia ser o movimento das marés, tão impressionante na ilha de São Luís. A maré-memória (metáfora do poeta paraibano-maranhense José Chagas) transforma as cidades em cidades submersas. A rememoração/imaginação poética de Athayde inventou uma São Luís submersa, a cidade morta-viva, cidade afundada de nossas memórias e de nossos sonhos. Não é à toa que essa surrealista São Luís submersa nos apareça também como imagem onírica: tudo nela remete a imagens de nossos sonhos e pesadelos. A velha cidade que afundou no meio da cidade presente reaparece como imagem inconsciente, como figura de um sonho. A rememoração poética da cidade se faz pelo revolvimento das imagens inconscientes da cidade, pela invenção das imagens poéticas que tragam à tona as cidades invisíveis, essas que não querem se deixar afundar, essas que falam de nossos medos e fantasmas, mas também de nossos sonhos e utopias. É o modo de Athayde nos revelar a velha e ilhada São Luís. E, por essa sua poética da cidade, ele nos conduz às vezes a pontos de vista deslocados, pontos de vista do lado de baixo: é de um escapamento de esgoto, junto com os ratos, que vislumbramos as luzes da cidade provinciana a partir do outro lado da ponte do São Francisco. E não se pode esquecer que a ponte de São Francisco foi a obra modelar de “modernização” da cidade ali no início dos anos de 1970, momento de recrudescimento da ditadura militar, momento do “milagre econômico” que reproduziu velhas misérias e violências. Os fragmentos da cidade submersa se juntam a panorâmicas noturnas em que a cidade deixa entrever sua cara “estranha e perturbadora”, suas casas e torres fantasmagóricas, seus ângulos deslocados, suas cores de tempestade.

Na segunda sala, onde se concentra um conjunto significativo das recentes pinturas de Athayde, é a paisagem urbano-selvagem do Rio que se oferece recortada em pequenas cenas reveladoras, flagrada em alguns fragmentos desconcertantes, mas também desdobrada em espelhos (ou em abismos). São pedaços do miolo urbano do Rio de Janeiro que o artista recolheu e refigurou. Mas tem algo de anonimamente próximo, de estranhamente brasileiro nesse Rio refigurado de Athayde: é, por certo, uma cidade grande e explosiva, exuberante e pós-moderna, mas Athayde desvia os nossos olhos e se concentra no banal revelador, em pontos de fuga, em desfigurações, fraturas, fundos, bastidores, belezas desbotadas, choques congelados, vislumbres vertiginosos. É o Rio, mas poderia ser Belém, Salvador, Recife, outras cidades brasileiras com suas fantasmagorias pós-coloniais, seus escombros de modernização violenta. É o Rio, mas poderia ser qualquer outra velha cidade globalizada na periferia latino-americana do mundo, Buenos Aires, Caracas, Cidade do México. Poderia ser até São Luís: uma das telas mais precisas e sugestivas no seu enquadramento das caixas de ar condicionado e fundos de paredes urbanas (quase uma composição geométrica) Athayde confessa ter nascido de um flagrante urbano ludovicense. As cidades violentamente globalizadas foram se tornando tristemente iguais e esses espaços anônimos, essas paredes carregadas de vazios parecem esquadrinhar e revelar as faces despercebidas do admirável mundo novo urbano em que nos movemos.

A poesia urbana de Baudelaire buscava flagrar instantâneos poéticos da Paris do século XIX e as transformações violentas da vida urbana eram expostas em seu caráter de destruição e de morte. Como um flâneur baudelariano bem brasileiro, Athayde nos oferece flagrantes poéticos da metrópole periférica do século XXI. No mosaico dos seus fragmentos urbanos contemporâneos, a experiência da morte mostra a sua mais nova cara na saturação de imagens esvaziadas e mortíferas que se proliferam, sejam elas as já velhas imagens embotadas da publicidade que rivalizam com a solidão anônima das caixas de ar condicionado, sejam elas as novíssimas imagens digitais como pequenas mortes registradas a cada minuto nos aparelhos celulares. Esse mundo de imagens diluídas e banais nos são devolvidas em espelho pelas caveiras que fitam a si mesmas das câmeras de celulares. Pois Athayde reativa justamente a potência crítica da imagem para nos deixar ver flashes da alienação no nosso mundo de imagens espetacularizadas mas sem potência. Ele se apropria poderosamente dos jogos de espelhos e simulacros que povoam as cidades do século XXI e nos lança nessa experiência bem contemporânea de não mais distinguir aquilo que seria real de sua simulação. O próprio pintor se põe aqui a pensar os limites do real e da representação num momento-limite que é, como alguns já buscaram apontar, o de um império de simulacros. Para o artista, trata-se de um jogo/embate que se dá no próprio terreno da imagem e, mais ainda, lançando mão da forma imagética tradicional por excelência, a pintura. Às vezes Athayde apela para certo uso irônico da imagem, como no jogo impressionista brincalhão de O pato, que põe na paisagem supostamente bucólica da cidade a violência cotidiana. Ou como na estátua urbana de um índio apontando sua flecha para a onça de uma propaganda. Mas às vezes à distância irônica vem se juntar uma atenção poética ao insignificante e ao esquecido no chão. O olhar de Athayde, como o de um Edward Hopper dos tristes trópicos, se dirige então para a solidão miúda que se deixa flagrar em cenas urbanas cotidianas e nelas o personagem humano aparece não inteiro mas no seu gesto despedaçado: a mão de uma fumante na janela, as pernas de um transeunte na calçada. Em torno da mão solitária da fumante, imagens de uma cidade enquadrada se sobrepõem e se contrapõem, tornam ainda mais aguda a solidão. As pernas são de mais um passante sem rosto mas, a partir delas, o nosso olhar é arrastado para a poça d’água onde luzes e restos da cidade se deixam refletir. É dessas imagens do comum e do baixo que Athayde arranca uma “estranha e perturbadora” potência.

 

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