Eu sei que você fica preso no ar quando eu canto

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Autor: Celso Borges

 

Chico Maranhão. Photo: Márcio Vasconcelos

 

Às 17h de uma terça-feira, 18 de agosto de 1942, enquanto os alemães afundavam navios brasileiros no Atlântico, no meio da Segunda Guerra Mundial, a professora Camélia Viveiros dava a luz a Francisco Fuzetti Viveiros Filho, que no futuro seria conhecido como Chico Maranhão, um dos nossos compositores mais importantes.

Era uma tarde clara sobre a cidade e o quintal da casa, um antigo sobradão, na Rua de Santo Antonio, 161, esquina com o Beco da Bosta. A família Viveiros morava no antigo solar da Baronesa e do Barão de São Bento, seus antepassados, a menos de 200 metros do seminário onde Padre Antonio Vieira escreveu e pregou, no século XVII, o Sermão de Santo Antonio aos Peixes, um de seus textos mais importantes.

Há cerca de três anos comecei a escrever um livro sobre esse artista, tendo como núcleo central o disco Lances de Agora, que ele gravou junto com uma turma de músicos maranhenses na Igreja do Desterro, em 1978. O texto caminha pelas ruas, rios e mares da cidade e nomeia seus personagens, presentes na obra do compositor de uma maneira única e poética.

Lembranças, lenços, lances de agora – Memórias e sons da cidade na voz de Chico Maranhão será lançado pelo selo Pitomba!, com projeto gráfico de Bruno Azevêdo e prefácio de Flávio Soares. Abaixo, um fragmento, como um presente pra Chico. Viva!

A cidade e o mar

 

Arte: Alex Soares

 

Em 1972, Chico já está de volta a São Luís, depois de quase dez anos morando em São Paulo. Os primeiros meses são de dor e solidão. De que forma aquele homem e artista percebe essa cidade diferente que encontra, crescendo independentemente do seu canto? Nem o mar é o mesmo. Que mar, então, é o mar de Chico Maranhão? Posso compará-lo, por exemplo, ao mar de Dorival Caymmi? Não. Porque a Bahia não é o Maranhão, nem São Luís é Salvador. E os pretos escravizados que ficaram na Bahia são, em sua maioria, de tribos diferentes das que vieram para o Maranhão.

Poeticamente posso aproximá-los, mas a distância é evidente. Ponta d’Areia não é Itapuã, nem São Marcos é a Baía de Todos os Santos. Há os pescadores em comum, mas os fieis de São José não são os fieis de Nosso Senhor do Bonfim. No meio do caminho tem um 2 de fevereiro, lá. E um São José de Ribamar em setembro, aqui, cobrindo a cidade balneária de fé e claridade.

Chico não atravessa a ponte de São Francisco. Vai de barco para o outro lado do rio, encontrar o coração da Ponta d’Areia. Mas Caymmi também não fala do elevador Lacerda. Podemos colocá-los, então, numa gangorra, no mesmo parque, num sobe e desce, um sorrindo para o outro.

Roubo Risério 1, baiano falando em Caymmi: uma utopia de lugar 2 e, sem saber, ele me ajuda a colocar os dois artistas, um no colo do outro. Ou um ao lado do outro, ouvindo e vendo o Brasil das ruas e não dos escritórios; homens e mulheres, meninos e meninas, nas escadarias e não nos elevadores e seus muzaks como trilha sonora.

Mas a distância entre eles é evidente, digo mais uma vez. A mulher de Chico não é a mesma de Caymmi. A de Chico, mesmo quando é bonita como um cavalo, foge qual fumaça, como um pássaro de raça. A de Caymmi se divide em duas: a do mar, mais reservada, e a do samba, mais sensual, aproximando-se das baianas de Jorge Amado, que rebolam e requebram. Talvez como Benigna, de Josué Montello, personagem de Os Tambores de São Luís.

E se trago Josué e Jorge pra conversa é porque também eles escrevem sobre o mar, como Chico e Caymmi. Mas Chico não é Josué, nem Caymmi é Jorge. A diferença entre os compositores é a mesma entre os escritores? Impossível compará-los. Será?

E afinal de contas, a literatura de Jorge Amado é maior que a de Josué Montello? Sim. E a música de Dorival Caymmi é maior que a de Chico Maranhão? Não. A música de Chico Maranhão é a maior música do mundo porque a música de Chico Maranhão é a música de minha aldeia. E ela se molha, se encharca das águas que banham minha aldeia.

Desculpe se insisto no mar, é que agora quero deixar Caymmi de lado e colocar em seu lugar o compositor Sérgio Habibe, filho de Seu Ruy, que adorava pescar na praia do Olho d’água. Sinto-me tentado a trazer Sérgio pra perto de Chico.

Olho d’água já chorou

Cada palmeira era um índio

Olho de boi segredando na areia

E as corais 3

Sérgio, sete anos mais novo do que Chico, dividiu com ele o palco algumas vezes nos anos 1970 e 1980. Os dois ajudaram a contar e cantar alguns segredos de vôos e ventos que vêm e vão, e varrem a areia das praias de São Luís, espalhados entre mariscos, caravelas e maçaricos. Sérgio bebendo o Olho d’Água e Panaquatira, e Chico a Ponta d’Areia e Ribamar.

E é nessas águas que rodeiam, enchem e vazam a cidade, que vislumbro o espaço em que talvez eles mais se aproximem, daí meu desejo de vê-los no mesmo barco, sob a mesma vela e ventania. Atravesso o sol e o sal dessa conversa em silêncio, sem saber o que falam ou o que confessam.

Que o mar os embale até uma terceira margem imaginada de sonhos e cantigas. Que a linha do horizonte costure o amor que eles nem sempre souberam dividir. Um perto do outro/ um aperto de mãoComo dois irmãos/sombras de quem são/Bandeira se levantou no barracão. É o coração. É o coração 4.

1 Antropólogo, poeta, ensaísta e historiador baiano (Salvador, 1953), autor de Caymmi: uma utopia de lugar, Textos e tribos, A utopia brasileira e os movimentos negros e Fetiche, entre outros livros.

2Caymmi compôs uma versão idealizada da Bahia. De uma parte, ele ignora o que não se ajusta à imagem diferencial da região….. De outra, ele exclui programaticamente de sua poesia os aspectos desagradáveis da vida baiana” (Caymmi: uma utopia de lugar – Perspectiva, 1993).

3 Versos da canção Olho D’água (Sérgio Habibe e Hilton Assunção), uma das faixas do disco Pedra de Cantaria, 1980.

4  Versos de Escravo Coração, canção de Chico, gravada do disco São João, Paixão e Carnaval

 

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