Pierre Verger, papai e a cidade vista da Beira-Mar

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Autor: Celso Borges poeta e jornalista

 

Pierre Verger, fotógrafo francês

 

Mário Araújo, comerciante português. Ambos escolheram

o Brasil pra morar e fotografaram a cidade de São Luís no final dos anos 40 do século passado

 

Finalmente podemos ver muitas das fotografias que o etnólogo francês naturalizado brasileiro, Pierre Edouard Leopold Fatumbi Verger (1902-1996), fez no Maranhão em 1948. A recente exposição inaugurada no Centro Cultural Vale Maranhão é realmente um conjunto de imagens fantástico e é por causa dele que escrevo este texto.  Não para me deter na análise das fotografias de Verger, mas para destacar uma incrível e comovente coincidência: meu pai, Mario Araujo, também fotografou São Luís naquele período.

Volto no tempo e pego nas mãos um belíssimo catálogo lançado no Brasil em 2002. O lançamento foi durante a exposição O olhar viajante de Pierre Fatumbi Verger, que integrava uma série de homenagens comemorativas ao primeiro centenário de seu nascimento. A mostra começou em abril daquele ano no Rio de Janeiro e percorreu algumas das cidades brasileiras fotografadas pelo artista. Estavam previstas exposições em Belém, Rio, Salvador, Recife, São Luís, Brasília e São Paulo, mas a capital maranhense ficou de fora, possivelmente por falta de infraestrutura local.

 

 

O catálogo que folheio emocionado traz cerca de 600 fotografias, entre as décadas de 1930 e 1970, a maioria delas de Salvador (BA), onde Verger morou durante mais de 30 anos. São Luís é a cidade mais fotografada depois da capital baiana. Pierre Verger também mirou sua lente para fora do Brasil: Abomé (Benim), Guadalupe, Córdoba, La Paz, Laos, Papeete (Taiti), Moorea (Polinésia), Son La (Vietnã), Paucartambo (Peru), Buenos Aires e Pequim, entre outras. O francês clica o povo negro em manifestações artísticas, religiosas ou nas ruas, tecendo seus dias de alegria e trabalho. O livro excede os limites do registro etnográfico convencional, focando mais a beleza e a espontaneidade, levando para o segundo plano o aspecto científico.

 

Foto da página 8 do catálogo O Olhar Viajante de Pierre Fatumbi Verger;

PORTO, SÃO LUÍS, BRASIL 1947-1948; foto reprodução: Clarisse Borges

 

Folheio o livro, páginas iluminadas, e dou de cara com caras e fotos em preto e branco de São Luís do final dos anos 1940. Imagens de uma cidade que quase não conheci, tiradas antes de eu nascer, mas que por alguma razão encontram-se dentro de mim. São 16 retratos de gente simples, a maioria formada por pescadores e estivadores na rampa Campos Melo, Praia Grande, antes da construção dos aterros.

 

 

Foto da página 5 do catálogo O Olhar Viajante de Pierre Fatumbi Verger;

PORTO, SÃO LUÍS, BRASIL 1947-1948; foto reprodução: Clarisse Borges

 

Mario, Maria e a fotografia

Coincidentemente, o catálogo chegou às minhas mãos pela primeira vez na mesma época em que mandei enquadrar algumas fotografias que meu pai, Mario Araujo, fez de São Luís naqueles anos, quando ainda não havia as pontes do São Francisco e a Bandeira Tribuzi. Quase senti o vento e a claridade daquele tempo sobre mim enquanto via as fotos que papai tirou com uma máquina Laika alemã. Na época ele fazia parte do Foto Clube do Maranhão e a fotografia era um de seus hobbies.

 

Meu pai entre amigos e integrantes do Foto Clube do Maranhão, em imagem do final dos anos 1940, possivelmente de 1949. Mostrei a fotografia para minha mãe, mas ele não conseguiu se lembrar do nome de todos. Da esquerda para a direita: ? Mário Araújo, Mário Calheiros, Edison Pinto (Edy), Oswaldo Paraíso, ? Araujo, João José (aviador, de óculos escuros) e Glacymar Marques.

O registro foi feito possivelmente por Dreyfus Azoubel, que também fazia parte do grupo que organizou uma exposição de fotografias em julho de 1951

 

As fotos de meu pai nem se comparam, é claro, com as de Verger, que dedicou quase a vida inteira à arte de fotografar. Mas minha alma sempre estremece quando vejo os barcos e paisagens que ele registrou nos finais de semana, pensando talvez em minha mãe, Maria Eugênia, na época uma adolescente de 15 anos com quem namorava e se casaria quase dois anos depois.

Uma das primeiras fotografias de meu pai no Brasil, onde chegou em março de 1940

 

Mario Moraes da Silva Araújo, português de Braga, nascido em 17 de outubro de 1922, atravessou o Atlântico em fevereiro de 1940, no meio da segunda guerra, aos 17 anos. Quase não sobreviveu para contar sua história em solo brasileiro. É que o navio que o trouxe ao país foi afundado pelos alemães na viagem seguinte. Não fosse assim, não teríamos nascido, eu e meus seis irmãos (quatro mulheres e dois homens), quase todos na Rua da Paz, 350, em frente à igreja de São João, num sobrado de morada inteira, vendido em 1983, e onde hoje funciona uma loja de eletrodoméstico ou coisa parecida. E quando por alguma razão passo por lá um vazio me explode no peito e ouço os versos de Gullar, fragmento do Poema Sujo: Nossa casa cheia de vozes tem agora outros moradores…. Nem a pé, nem andando de rastros, nem colando o ouvido no chão voltarás a ouvir nada do que ali se falou.

Uma das fotos que papai tirou de barcos na baía de São Marcos, final dos anos 1940

 

Papai casou-se com minha mãe, Maria Eugênia, portuguesa do Porto, em outubro de 1951. Depois disso pouco fotografou. Dedicou-se durante os 30 anos seguintes a trabalhar e a criar os filhos. Amava, além da fotografia, literatura, música e cinema. Gostava de Guerra Junqueiro e Camilo Castelo Branco, entre outros escritores. Abandonou tudo, como se não fosse possível conciliar arte e o sustento da família. Nunca lhe fiz essa pergunta: “Por que deixaste a arte, meu pai?” Mas não o sentia como um artista frustrado. Talvez não fosse um artista de verdade, pelo menos a partir de um determinado momento da vida.

Ao contrário de Verger, maiúsculo e universal, meu pai era um fotógrafo amador, para quem a arte era um simples hobby e não o verdadeiro e único sentido da vida. Não o condeno por isso. Talvez, sem saber, tivesse me deixado com esse “vírus” no sangue, essa doce maldição, para que eu continuasse aquilo que parou no meio. A partir dos 17 anos, literatura, música e cinema passaram a ser o motivo principal de minha vida. Quem sabe o Deus tradicional que me falta venha desse amor. A arte é a minha religião e meu Deus, quem me dá respostas, verdades e mistérios, até o fim.

 

Contra luz

 

Vela remendada

 

De bordo

 

De bordo

 

Crepúsculo

 

Crepúsculo

 

Arquitetura

 

Todas as fotos são de Mario Araujo, tiradas da Beira-Mar, com a exceção da última, Arquitetura, da Praça Gonçalves Dias. Elas fizeram parte da 1ª Exposição de Arte Fotográfica do Maranhão, reunindo oito fotógrafos, em julho de 1951, promovida pelo Foto Clube do Maranhão e patrocínio do Foto Mendonça, da Ótica Lux, Kodak e Moraes & Cia Ltda.

 

Folder da exposição com cerca de 130 fotografias, nove delas de Mario Araujo: Arquitetura, Vela remendada, Entrada da barra, Contra luz, Esperando a maré, Crepúsculo, Rio Anil, De bordo, e Cajueiro quebrado

 

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