Aqui não vai ter réquiem

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É carnaval na academia dos loucos, loucos pelo Chico: Celso, Beth, Márcio, Jorge e eu

 

Autora: Andréa Oliveira (Jornalista e escritora)

Vivi uma bela história de amor com a cidade de São Paulo, que começou no dia 8 de março do ano 2000 e durou quase dez anos. Boa parte desse tempo morei numa casinha de vila em Pinheiros, que virou uma espécie de embaixada maranhense para grandes encontros e intercâmbio de patrícios com os amigos tantos que fizemos naquele chão. Saudade grande da cidade e ainda mais das pessoas, amadas e também das anônimas com quem cruzava na rua.

Nos últimos dias essa saudade ficou ainda maior com a sucessão de réquiens para um lugar querido, nos altos da Vila Madalena, a Mercearia São Pedro, velha e boa Merça dos boêmios e de uma geração de artistas que ali fizeram história. Cada vez que um lugar desaparece do mapa das nossas memórias é um pouco da gente que vai embora junto. Não tão boêmia, a minha Mercearia São Pedro tem a luz dos inícios de tarde de sábado, em que íamos almoçar com as crianças, brindando uma serra malte bem gelada.

Uma cena para sempre vai ficar congelada em minhas lembranças. Pedrinho, com uns dois anos de idade, depois de comer tudo o que havia no prato que oferecemos, escorrega da cadeira e segue em direção à mesa ao lado, onde um casal começava a almoçar e acha muito fofo o garotinho que chega perto. Na maior tranquilidade ele se agacha debaixo da mesa e junta as mãozinhas no rosto numa expressão de quem faz força. Corta para a minha cara e de Celso, impressionados com a sem cerimônia dele, própria das crianças que se sentem à vontade num lugar, fazendo seu cocô ali mesmo, sem pedir licença. Terminado o serviço, veio nos dizer que precisava trocar a fralda.

A Mercearia é um desses lugares cinematográficos que você nunca vai encontrar numa revista de decoração. Para sorte de quem conheceu, e consolo de quem nunca esteve lá, a academia das letras bêbadas foi amorosamente roteirizada nesse texto do Xico Sá.

Turma reunida com Chico em noite de celebração pós lançamento do álbum e documentário A Palavra Acesa de José Chagas; álbum produzido por Celso Borges e Zeca Baleiro e documentário dirigido por Helena Tassara

 

 

Xico Sá e Fabiano Calixto, com Bruno no centro, conhecem o Chico Discos na noite em que ‘matamos’ o padre Zezinho; em primeiro plano: Celso, eu, Josoaldo, Aline e Marília

 

O poeta Celso Borges faz anos rodeado delas: Marivânia, eu, Maristela, Luciana e Perla

 

Réquiem para a Mercearia São Pedro

O obituário da Mercearia acendeu a luz de uma dor muito nossa pela saída de cena do que costumo chamar do meu-melhor-lugar-do-mundo-em-são-luís-do-maranhão, o Chico Discos. Sem despedida, discretamente fechado em razão das medidas de prevenção sanitária impostas pela pandemia de covid-19, o território localizado nos altos da esquina das ruas dos Afogados com São João, centro da cidade, é muito mais do que memória. Chico é um pequeno grande mago que transformou com sua arte cada centímetro do chão, das paredes, do teto e de todo o mobiliário daquele que é sebo, bar, cinema, salão de baile e também uma academia de loucos, loucos pelo Chico.

Basta um passo entre a soleira e o lado de dentro para entrar no portal que nos leva para o mundo dos afetos. O abraço do Chico, o balcão iluminado, os janelões por onde alcançamos as torres das igrejas e os telhados imensos da cidade velha. Algumas poucas noites éramos só eu, Celso e ele! Essas eram especiais, regadas a um vinho que ele tirava da cartola, junto com aquele pratinho de queijo. Penso no Chico ali no balcão, a chave no bolso, o som do sino, e vejo Luíza ao seu lado, irmã de outras vidas, numa conversa com Aline, a musa primeira. Eduardo, Josoaldo, Beto e Myrna chegaram cedo e nos juntamos a eles. Emmanuéle Riva enche a tela em mais uma exibição de Hiroshima mon amour e eu me sinto dentro de um sonho. Alê e Luciana tocaram o sino e sobem as escadas junto com Marcio e Beth. As mesas estão cheias, é terça-feira, Marco Antônio ainda n&ati lde; o chegou para a sequência de vinis.

 

Luiza entre nós: presidenta do clube, eleita por aclamação

 

       Ali no balcão, a turma festejando a vida

 

Vejo Lucap num show tão bonito! Celso no palco fotografado por Lara e Clarisse aprendendo a usar a câmera do Garrone. Raquel me fala coisas bonitas e Ricarda dá sua risada que é puro abraço. Sábado teve desfile do brechó de Luíza, quanta beleza em cada detalhe! Bruno trouxe a mala de livros da Pitomba! Pedro e Clarisse estão no comando das vendas do novo livro de Celso. Áurea e Tássia brindam no janelão perto do palco e Mavi dança com Estelinha ali perto. Abraço Vaninha e descubro que seu amigo é um primo distante que eu não conhecia. Desde os 18 nas terras gringas, ele me diz sentir falta desse nosso jeito maranhense de cumprimentar todo mundo com um abraço. Lá na terra do Sam não tem disso, não.

É carnaval, o baile tá bonito e Jorge comanda a pista vestido de pirata. Cobertos de luzes, somos só alegria nessa noite colombina. Viva São João!, tem baile outra vez. Ah, Luíza, quanto amor nesse Baile Perfumado!!! Paro para uma selfie com Wagner. Amanhã tem mocotó, Josoaldo mandou avisar. Xico Sá veio conhecer e já virou freguês. Cantamos, bêbados e desafinados, as canções do Roberto, e nessa mesma noite matamos, sem querer, o padre Zezinho. Meu aniversário, olha a feijoada! Aninha fez bolo de laranja e creme de bacuri. Agora a família toda conhece o Chico Discos. Eita, Chiquinho não viu nem a cor do creme. Aninha faz outro e levamos depois.

Helena Tassara chegou para o lançamento do documentário Palavra Acesa do José Chagas e agora estamos todos juntos no Chico. Ah, que foto linda, olha ele ali no meio! Tem Zeca Baleiro, Samme e do outro lado a Márcia, eterna coreira, Suzy e também tia Zila. Corta. Éguas, olha o Dyl trazendo todo mundo dentro desse poema. Outra foto, não, um desenho, o Chico Discos eternizado no livro dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá.

É tanta gente passando por dentro dos olhos, mas agora eu só penso na fome, perto da meia-noite, antes do advento da estufa com os salgados veganos. Às vezes pedíamos pizza. Em outras, Maristela levava sanduíches de pernil e outros quitutes, um negócio que salvou muitas noites. Na quarta-feira está rolando um hambúrguer e a garotada chegou junto. Virou modinha, o Chico Discos lotado e não entra mais ninguém. Fico com ciúme, que história é essa desse tanto de gente descobrindo o nosso canto?

Nosso coração vermelho celebrando a Ursal Maranhão: Maristela, Luciana, eu e Celso

 

Vieram Narciso e Ariane, agora tem café, sinto o cheiro. Andam dizendo que Chico quer fechar o Chico Discos. Como assim? Que é isso, Chico? A pandemia nos afasta. Nem lembro quando foi a última vez em que toquei o sino. O café tá aberto, gente! Vou ali comer um beiju no fim da tarde, só desculpa para abraçar o Chico. De máscara, é claro!

Sábado na Deodoro. Descemos a Rio Branco, passamos pela Maria Aragão. Somos uma multidão de gente armada de álcool gel gritando Fora, Genocida! Na Praia Grande encontramos os nossos. Uma trégua nas máscaras só para tomar um gole de cerveja. Naquela mesa de bar na rua Portugal formulamos um primeiro esboço da minuta de criação da Associação Etílica, Literária & Cinematográfica dos Amigos do Chico Discos. A ideia é formalizar nosso vínculo afetivo e institucional com o lugar, estabelecendo mensalidade, deveres e direitos para que o Chico Discos não feche: – aqui não vai ter réquiem!

Dali seguimos a pé pela rua do Sol e na Afogados, embaixo de uma das janelas do nosso patrimônio sagrado, chamamos pelo Chico em gritos abafados pelo tecido das máscaras. Ele aparece. Acena e sentimos que a ideia foi abençoada, embora ainda não saiba do nosso intento. Luiza foi encarregada de amolecer o coração do nosso Chico e uma comissão será constituída para apresentar a proposta.

Caso não dê certo, pensaremos em outras estratégias, como ocupar a calçada dele em vigília, fazer uma petição pública, dar um abraço coletivo em todo o quarteirão, fazer greve de fome… Em nosso favor temos o fato de que o imóvel – que nada é sem a mão e a alma do Chico – não está em disputa pelo mercado imobiliário. Este agora tem seus olhos grandes voltados para a região da Ponta d’Areia, ali onde um dia existiu o bar Coqueiro – extinto para dar lugar a prédios de luxo que são o sonho de consumo dos aspirantes à casa grande. O Coqueiro guarda boa parte das minhas memórias de adolescência, mas essa é uma história para outro dia.

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