Artigo e fotografias falam da poesia de Cynthia Martins

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A poesia de Cynthia Martins, no livro Visgo, vista pela fotografia de Jorrimar Carvalho e artigo de Valéria Lourenço. 

 

Artigo

 

Visgo viver ou a poesia como encantamento

 

Por Valéria Lourenço (poeta e professora do IFCE – Campus Crateús)

O novo livro de poemas de Cynthia Carvalho Martins, Visgo, provoca encantamento desde a concepção da capa e segue por suas páginas a nos despertar sensações na forma como os poemas estão organizados. Para além do trabalho visual, Visgo, nos convida a refletir sobre alguns temas como o ser mulher, o ofício de escritora e até mesmo a pandemia do covid-19.

Cynthia Carvalho Martins é poeta, antropóloga, professora na Universidade Estadual do Maranhão e integra a equipe do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Nascida em São Luís, considera Pindaré sua terra natal e é no Maranhão que a poeta vive e conhece profundamente as realidades sociais que servem de matéria para suas pesquisas, suas aulas e seus poemas. Não por acaso, a cultura maranhense permeia vários dos textos presentes em Visgo.

ILHA VISGO

A SERPENTE

                      SEMPRE

                      PRENDE

 

OCEANO-ME FUNDO EM SÃO LUÍS

(MARTINS, 2021, p. 06).

 

Para abrir caminhos, a poeta começa com um dos mitos que permeiam a história da ilha de São Luís. Segundo a tradição oral, debaixo da cidade vive uma grande serpente e, quando sua cabeça e seu rabo se encontrarem, a ilha virá abaixo. No entanto, aqui, Cynthia brinca com a palavra visgo, título do livro, aquilo que cola, que nos prende, e dá outro nome para São Luís, também conhecida como ilha magnética, a ilha que atrai, a “ilha visgo”. Em seguida, ao usar a palavra serpente, a poeta subverte a lógica judaico-cristã que, muitas vezes, associa a figura da mulher a este animal como algo traiçoeiro, mas não neste poema. É essa serpente que prende e faz a poeta mergulhar profundamente nas águas de São Luís, em suas histórias, que são também as de Cynthia.

Lançado em 2021 pela editora Casa 8. Visgo é uma provocação desde a sua capa formada por uma folha em branco e que tem uma pequena foto quadrada com azulejos portugueses, tão famosos no Maranhão, envelhecidos, cobertos de plantas e raízes como que abandonados. É essa memória de outros tempos, de um Brasil que já foi mas que reverbera ainda hoje, que por vezes, precisa ser escavada e relida sob outras perspectivas. E a poeta se propõe a isso:

Abro com chaves de papel

os escritos da minha história

que sua borracha cruel

não apaga da memória

[…]

(MARTINS, p.68)

 

E aqui, Cynthia Martins se posiciona em seu lugar nestas lutas cotidianas que têm sido travadas. Afinal, há mais de três décadas a autora se dedica à pesquisa sobre quilombos e mulheres quebradeiras de coco babaçu. Ou seja, a professora, antropóloga, mas também poeta, cuidadora das palavras, compreende que, para as comunidades tradicionais com as quais ela trabalha e vive, a memória é uma peça fundamental na busca de direitos básicos, em especial, o principal deles, o direito à terra.

O encantamento que Visgo provoca, como me referi no início do texto, é cuidadosamente pensado já que a palavra encantado, encantaria e encantamento são muito caras ao vocabulário maranhense e, não por acaso, Encantada é o nome de um dos primeiros livros de poemas de Cynthia Martins, lançado em 2010. Além disso, a autora  publicou Miramente (2018) e Miração (2019), ambos de poemas e Quase cadência, livro de contos, (2020).

Na apresentação de Encantada, é Camila da Valle, mais uma poeta, que nos ajuda a desvendar a escrita de Cynthia: “Em terras de poetas oficiais, e não só – sobretudo não só – , Cynthia Carvalho Martins se propõe a romper com as dominações, e segue desemaranhando a vida cotidiana que entra por todas as frestas” (VALLE, 2010, p. 9). É isso! Sabendo muito bem o que quer cantar, Cynthia Martins canta o amor, canta a vida, um “visgo viver”, canta as lutas. Mas não canta sozinha. Se embala e nos embala junto com ela, ao som de tantas bençãos em forma de ritmo:

É tanto baia baia baiou

Que já nem sei se é mina,                    terecô

                                       Ou candomblé

       Se é macumba            ou berimbau

                               Caxixi

                               Ou dona Teté[1]

(MARTINS, 2021, p. 36).

 

Conhecedora dos saberes tradicionais, a poeta traz elementos da cultura negra maranhense e também brasileira para ilustrar seus poemas. Passando por versos do tambor de crioula em “baia baia baia baiou”, citando instrumentos como o berimbau e o caxixi, o cacuriá de dona Tetê, dança típica do estado do Maranhão, que tem em dona Tetê (1924-2011) como uma referência, e não se esquecendo da religiosidade, como o terecô, a mina (tambor de mina) ou a macumba, Cynthia Martins constrói uma roda em que desfilam temas tão caros aos  maranhenses.

Sem se esquecer da cultura indígena, a poeta chama ao centro da escrita, a figura da mulher indígena para falar de passado, presente e futuro:

 

Eu vi a índia reprimida

                         Pela autoridade

                         E dos teus olhos

Saíram faíscas ancestrais

Que nenhum poder doma

(MARTINS, 2021, p. 50).

 

A imagem da índia construída pela poeta subverte a lógica que por tanto tempo perdurou nas artes brasileiras, fosse na literatura ou nas pinturas, a do corpo indígena como submisso e dócil, e nos reapresenta uma índia resignada que, apesar de ter sofrido diversas tentativas de silenciamento e aniquilamento por tantos séculos, hoje é capaz de reunir as “faíscas ancestrais” que transformará em algo indomável.

Mas a poeta também se coloca como essa mulher que não se rende:

      O que me diz respeito é sempre cósmico

&

Picada nenhuma fere

                                  Quem jamais se coloniza

(MARTINS, 2021, p. 30).

 

O uso do verbo colonizar acima pode nos trazer diferentes chaves de leitura nos convidando, inclusive, a uma nova interpretação para a palavra. Bem, conectando passado e presente, esse colonizar nos remete ainda às formas de escrita literária que, por séculos, se submetiam a algum modelo europeu. Mas Cynthia Martins constrói ela mesma as suas formas. Vejamos a seguir:

Nunca fui de rima

                     Nem de animação

Segui sempre pacata

                     Na minha contramão

(MARTINS, 2021, p. 33)

 

Aqui, a temática do fazer poético aparece como uma oposição às formas tão rígidas do que se considerava um poema, como, por exemplo, a rima. Em outro poema, temos:

Engoli

minha palavra

para sentir o que se fal

(t)ava

Por dentro de mim

(MARTINS, 2021, p. 27).

 

Uma escrita como uma “vida visgo”, é esse o lugar da poesia neste novo livro. Uma poesia que anda de mãos dadas com a vida cotidiana, como falamos no início deste texto, e que, para além de falar, também cala e ouve o que o silêncio, tão caro aos/às poetas, tem a dizer. Como uma maranhense que conhece muito bem o lugar onde vive, a poeta nos visga e fisga em sua ilha-poesia-mistério e nos encanta com os bailados dos tambores de crioula, com os batuques que rasgam a noites nos terreiros, com a pele que arde sob o sol e abaixo do sal do mar, mas principalmente com as palavras. É essa palavra de dentro, como no poema acima, engolida, calada, mastigada que Cynthia Martins nos devolve, não mais silenciada e/ou violentada, mas grávida de sentidos tantos que somente ouvidos, bocas e olhos atentos são capazes de compreender. Como nos convida a poeta Lúcia Santos, nos seu escrito sobre o livro, “deixe-se visgar”.

 

Fotografia

Ensaio de autoria do fotógrafo Jorrimar Carvalho

 

A poeta no Centro Histórico de São Luís 

 

 

 

A poesia no Centro Histórico de São Luís 

 

 

 

 

 

 

Portas, fechadura do Centro Histórico de São Luís 

 

 

Azulejos do Centro Histórico de São Luís 

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